Vanzolini e Adorinan Barbosa, o "amigo de muitas cachacinhas" que hoje ele "visita" no Mercadão. Foto: Gustavo Lourenção
Considerado por muitos o embaixador do samba de São Paulo, ele agradece o epíteto. “Não é verdade, mas eu gosto”, diz, sorriso nos lábios. Acomodado numa poltrona de couro na modesta casa do Cambuci, “bairro cheio de bares ótimos”, o homem culto que cresceu rodeado de livros e se tornou zoólogo de reputação internacional põe em perspectiva a criação de uma vida, 70 composições e 155 trabalhos científicos. “Que glória é essa, meu Deus”, questiona, num lapso, o declarado ateu, bisneto de anarquista. “É uma glória muito humilde. Não tenho motivos para ser vaidoso.”
Nesta sexta 27, semana em que São Paulo completa 458 anos, Vanzolini concederá ao público o privilégio de tê-lo na Choperia do Sesc Pompeia. Instalado numa mesa, cervejinha à mão, o artista acompanhará alguns de seus grandes sucessos, interpretados por Ana Bernardo e Carlinhos Vergueiro. Entre uma canção e outra, o show será pontuado pelas reminiscências do compositor que, junto com Adoniran Barbosa, de quem foi “amigo de muitas cachacinhas”, traduziu a cidade de forma definitiva.
“Adoniran era ótima pessoa, nos dávamos muito bem. O cara mais desligado que já conheci. Vinha de família italiana do Vêneto. De menino o chamavam de Joanim.” Os longos papos entre Vanzolini e João Rubinato (Adoniran), que em sua simplicidade dizia não entender bem o que o cientista fazia (“ele mexe com zoológico, sei lá”), jamais renderam samba. “Sempre me pedem para contar como era nossa conversa. Era muito cotidiana. Não tinha nada demais. Era nossa conversa.”
A famosa Tiro ao Álvaro, relembra, surgiu como um presente do jornalista e escritor Osvaldo Molles ao amigo Adoniran. Foi Molles também o criador do personagem Charutinho, de tiradas engraçadas embaladas por sotaque italianado, que interpretou com grande sucesso na Rádio Record. “Adoniran acabou assumindo na vida real o personagem da ficção. No fundo, ele era mesmo só o Joanim.” Quando a saudade aperta, Vanzolini dirige-se ao Mercado Municipal, o Mercadão da capital paulista. “Colocaram uma estátua do Adoniran numa mesa. De vez em quando vou lá tomar uma cerveja com ele.”
A prosa animada de repente silencia. O olhar do compositor vagueia pela sala, ambiente que Ana Bernardo, sua atual mulher, define como “totalmente masculino”. Justifica-se a quase queixa: sobre um aparador, uma grande cobra de madeira exibe a boca aberta (souvenir comprado na Espanha). A seu lado, outra, bem mais modesta nas medidas, porém, verdadeira, exibe-se sobre um tronco. Para alívio dos visitantes, o exemplar não se move, foi plastificado graças a uma técnica especial. A terceira fica na mesinha de centro. Ao lado da porta de entrada, o cabideiro dá pistas sobre a atividade profissional do dono da casa. Ali estão os chapéus que Vanzolini usava para adentrar o mato em busca de bichos.
Foi com a zoologia que o boêmio ganhou a vida. Ele fez-se médico pela Universidade de São Paulo somente para facilitar o doutorado em zoologia, em Harvard, nos EUA. Especialidade: répteis. “Nunca examinei um doente na vida.” Por motivos óbvios, tem grande apreço por lagartos e lagartixas. Até hoje mantém a postos seu kit de pegar bicho. No ano passado, uma editora reuniu toda a sua produção científica. Também em 2011, a Fundação Conrado Wessel concedeu seu prêmio máximo a Vanzolini. “Vou receber em junho, na Sala São Paulo. É bom pra burro, são 300 mil reais”, admira-se. “Só que vou ter de pagar Imposto de Renda.”
Em um ano repleto de homenagens, Vanzolini receberá a Medalha Armando de Salles Oliveira. Um gesto de reconhecimento ao homem de números científicos robustos: 47 anos de trabalho no Museu de Zoologia, 31 deles como diretor, 40 mil animais capturados e a construção do mais completo acervo sobre répteis da América do Sul. A paixão pelos tais bichos começou quando ele ainda era imberbe. Aos 14 anos já estagiava no Instituto Biológico, onde foi iniciado na branquinha. “Todo fim de expediente rolava uma cachacinha, eu ganhava meia.”
No rastro dos répteis, muitas histórias. “Durante um trabalho na Argentina, fui comprar um disco da Mercedes Sosa e saí de braço dado com um soldado”, diverte-se. “O agente da polícia queria saber por que eu estava comprando aquele disco. Disse: ‘Ela é uma boa cantora’. O sujeito ficou olhando na minha cara. Me ameaçou, mas não podia fazer nada.”
Em tempos de ditadura, Vanzolini foi surpreendido por um convite impossível de ser recusado. O general Golbery do Couto e Silva, o “feiticeiro” do regime militar, o convocava a Brasília. Sem mais explicações. Enviou passagem aérea e limusine com motorista. “Ele mandou me chamar para passar um sabão. Queria me dizer que eu era contra o governo. E eu era. Me disse que isso poderia dar mau resultado.” Com calma inabalável, o cientista retrucou: “Isso vai depender de quem aguentar mais tempo, nós ou vocês”. Conversa encerrada, voltou para São Paulo.
Foi durante o tempo em que serviu na cavalaria que Vanzolini compôs um de seus maiores sucessos, Ronda, clássico que adquiriu a impressão digital de Márcia, sua mais reconhecida intérprete. “Eu sou Ronda”, já assumiu a cantora ao autor. A música é líder de pedidos nos karaokês até hoje. “As japonesas são as que mais pedem. No bar em que a Ana canta, vem escrito no guardanapo: Honda”, conta o compositor, rindo. A verdade, confessa, é que sua relação com a canção inspirada nas mulheres que observava no entra e sai dos bares à procura dos parceiros se desgastou. “Sabe o que as minhas filhas dizem? Fez, agora aguenta!” Vanzolini argumenta que a composição, de melodia pungente, é uma piada. “Começa dando a impressão de que a mulher procura o sujeito para se reconciliar, mas é para desperdiçar um pente de revólver.”
Vanzolini começou a compor quando frequentava a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Diz não ter ideia de qual foi a primeira composição. “Aliás, lembro, mas joguei fora, não prestava.” Outra meia dúzia teve a mesma infausta sorte. A criação favorita? “Não me ocorre nenhuma.” Dali a pouco cita aquela que considera uma de suas melhores, Longe de Casa eu Choro. “Fiz em Cambridge, pensando em São Paulo. Era uma poesia minha. O Paulinho Nogueira pegou o livro e disse: ‘Você não é poeta, é sambista. Aqui está cheio de letras de samba esperando música’. Paulinho era meu amigo de infância. Fez a melodia com Eduardo Gudin.” Outra que também teve o auxílio luxuoso de Paulinho Nogueira é Valsa das Três da Manhã. “Paulinho era um sujeito de qualidade humana excepcional.” A que mais rendeu? “Só uma deu dinheiro, Volta por Cima. Comprei livros para o Museu de Zoologia.”
Paradoxalmente, e para assombro de quem não o conhece, Vanzolini nada sabe de música. “Tenho péssimo ouvido. Não sei ler música, não sei o que é acorde”, jura. “Meu professor foi o rádio.” O método para preservar as composições consistia em decorá-las. “Se esquecesse perdia tudo. Dá uma mão de obra danada, por isso larguei”, diz. “Fica uma coisa obsessiva. Até que a música saia você não pensa em outra coisa.” O método Vanzolini de compor é outro mistério. “Inspiração a gente procura. Na cabeça. Geralmente começa com uma frase. Aí vem tudo junto, letra e melodia.”
Para quem supõe haver sempre algo autobiográfico em cada letra, o mestre desmente. “Nunca sofri com dor de cotovelo, por exemplo, é só um tema.” Na belíssima Quando Eu For Eu Vou sem Pena, interpretada por Chico Buarque em Acerto de Contas, coleção com quatro CDs que reúne a obra do autor (“essa caixa completou a minha vida”), o tom é triste. Uma tocante despedida. Mas não se trata exatamente disso. A inspiração atende pelos nomes de Miriam, Marina, Carol e Cris. “Eu estava numa fazenda, durante excursão do museu. Comecei a pensar em como seria quando partisse”, conta. “Eram as alunas que estavam ali, ele fez para elas”, entrega Ana Bernardo, diante do olhar risonho do poeta fingidor.
Boêmio de carteirinha, mulherengo apenas “na medida da necessidade”, Vanzolini adorava percorrer as ruas de São Paulo até altas horas, sozinho. Nesse périplo pela então metrópole da garoa, fez várias descobertas. “Uma vez abri uma porta e descobri os Macambiras. De outra, Virgínia Rosa.” Ana Bernardo, companheira dos últimos 15 anos, também foi um encontro patrocinado pela música. A filha do fundador dos Demônios da Garoa encantou o compositor com sua voz firme e melodiosa. “Ela entende a música que canta. É minha melhor intérprete.”
Autodefinido sambista tradicional, Vanzolini mantém o entusiasmo pela música. Ouve com admiração Noel Rosa, Dorival Caymmi, Nelson Cavaquinho, Sílvio Caldas, Cartola e Paulinho da Viola, entre outros grandes. E considera-se realizado. “Estou recebendo mais do que esperava. É muita recompensa no fim da vida”, comenta, com a sabedoria dos modestos. Na segunda-feira que antecede o carnaval, a Banda Redonda, fundada por Plínio Marcos, vai homenageá-lo. O enfarte que lhe surpreendeu em 2004, roubando-lhe 70% da capacidade cardíaca, provou ser incapaz de deter o poeta. “Estarei lá, lógico”, garante, com brilho no olhar.
Fonte: Revista Carta Capital, em 25/01/2012
Aproveito para sugerir a vocês que assistam, no final desse texto, cinco vídeos do Youtube, extraídos do Programa "Mosaicos - A Arte de Paulo Vanzolini", produzido em 2009, pela TV Cultura (SP).
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