Variações em vermelho. Rodolfo Walsh. Editora 34.
Trad: Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni. 239 páginas.
Ainda nesse prólogo, denominado “Advertência ao leitor”, o autor revela a profissão de Daniel: revisor de provas numa editora de nome curioso: Corsário. Walsh aproveita para afirmar a proximidade do trabalho do revisor com o do detetive, pois ambos precisam da observação minuciosa, da imaginação e, muitas vezes, da compreensão de sintaxes que aparentemente não se articulam.
A seu ver, literatura é investigação, e investigação, para ser bem sucedida, teria de seguir os trâmites da leitura literária. Os amantes do gênero poderiam tranquilamente afirmar: literatura policial é literatura maior. Portanto, já não seria um erro nem uma injustiça transformar Daniel Hernandes em personagem de ficção.
A primeira história, “A aventura das provas de prelo”, tem como personagem Raimundo Morel, escritor cuja carreira está em plena ascensão. Misteriosamente, no entanto, ele aparece morto no seu apartamento poucas horas depois de ter deixado a sede da editora.
A polícia, capitaneada pelo delegado Jiménez, apressadamente declara ter solucionado o caso. O escritor teria sido vítima de um acidente quando limpava a própria arma, presente de um oficial americano da época em que ambos estudaram em Harvard. Mas, quase ao acaso, Hernandes, o revisor, que conversara com Morel na editora havia poucas horas, percebe algo errado nas provas que este levara para revisar em casa. Daí em diante, o caso caminha para um desfecho totalmente inesperado.
“Variações em vermelho”, segunda narrativa, é uma espécie de homenagem a Conan Doyle, autor de “Um estudo em vermelho”. O mundo das artes plásticas e seus personagens ora temperamentais ora partidários da mercantilização da arte desfilam num ambiente em que jaz morta uma bela e misteriosa mulher, a amante e modelo do artista plástico Duilio Peruzzi. Já que um dos suspeitos do crime é pintor, o conto insiste na plasticidade do ambiente.
Mais uma vez Daniel Hernandes solucionará o caso; ele, agora, já uma espécie de companheiro do delegado Jiménez, que sempre o convoca quando os casos mostram-se dúbios. Na verdade, o revisor de provas é um detetive cerebral que, com uma visão não contaminada, diversa da visão dos policiais, consegue enxergar o detalhe que somente um especialíssimo leitor não deixaria passar.
Em “Assassinato à distância”, narrativa seguinte, Hernandes está numa espécie de casa de praia como convidado especial. Mas, na verdade, o convite tem segundas intenções. Ele é convocado para resolver um caso já dado como encerrado pela polícia. No episódio, é digna de nota a participação do delegado Jiménez, possível de ser identificado apenas no final do episódio, e com atuação também decisiva.
“A sombra de um pássaro” retrata um crime ocorrido no universo da alta sociedade, onde algumas pessoas pensam ter o poder sobre tudo e sobre todos. Um pequeno detalhe, porém, a tal sombra do suposto pássaro, levará Daniel a descortinar o crime de modo diferente da pretendida solução policial.
O hilariante último conto “Três portugueses embaixo de um guarda-chuva (sem contar o morto)”, mostra que, não apenas no Brasil, mas também em terras portenhas, os habitantes do extremo oeste da península ibérica sempre convidam a uma boa piada.
Rodolfo Jorge Walsh nasceu em 25 de janeiro de 1927 na província patagônica do Rio Negro, numa família de origem irlandesa. Em 1941, após instalar-se em Buenos Aires e trabalhar em várias profissões, como lavador de pratos e limpador de janelas, é contratado ainda com dezessete anos de idade pela editora Hachette. Nessa casa, exerce primeiro a função de revisor para, logo depois, tornar-se tradutor do inglês. No período verte, sobretudo, vários livros de literatura policial.
Em 1950, Walsh estreia na literatura com o conto “Las três noches de Isaías Bloom”, que receberá menção honrosa no concurso da revista argentina Vea y Lea, tendo nos jurados escritores como Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares. Walsh aventura-se em diversos gêneros literários até que, a partir de 1956, começa a escrever jornalismo investigativo. Publica, então, um livro-reportagem chamado Operação massacre, que desvendará um obscuro episódio da ditadura do general Aramburu. O escritor aproxima-se da esquerda e torna-se um intelectual inconformista, sempre pronto a usar a escrita em favor da justiça e da liberdade.
Ao contrário do que dissera sobre seu personagem no preâmbulo de Variações em vermelho, arrancado do universo da ficção para a realidade, Walsh não tem a mesma sorte do revisor de provas. Após escrever um artigo denunciando os crimes da ditadura militar que se estabeleceu na Argentina com o golpe de 1976, o autor cai numa armadilha preparada por um comando da Escuela de Mecánica de la Armada e morre metralhado.
Seu corpo jamais apareceu, engrossando o rol dos desaparecidos do período. O criador de Daniel Hernandes – decifrador de enigmas e dublê de detetive – não teve o poder de sobreviver à violência militar que se seguiu em seu país na segunda metade dos anos de 1970, mas sua obra goza, nos dias de hoje, cada vez mais prestígio não apenas na Argentina, mas a nível mundial.
Texto de Haron Gamal, doutor em literatura brasileira pela UFRJ, publicado no Jornal do Brasil, em 24/03/2012
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