Não à toa o polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007) foi um dos poucos jornalistas (e talvez seja mesmo o único) a ser indicado para o prêmio Nobel de Literatura. Poucos foram tão providenciais em observar um número tão grande de acontecimentos políticos e, o que é mais raro, do ponto de vista popular: escreveu sobre quase 30 revoluções e golpes de estado ao longo de sua carreira. Muitas delas longe do perímetro europeu, mas certamente sob seu signo de responsabilidade, como os massacres africanos ocorridos nas décadas de 1960-1970 (e depois), decorrentes das ruínas coloniais ou das guerras por independência ainda em aberto, quando Kapuscinski foi correspondente internacional da Agencia de Notícias da Polônia Comunista, o único a assumir o cargo.
Também visitou lugares, antes e depois, onde a chamada “Guerra Fria” verteu banhos de sangue, como na América Latina das ditaduras militares. Chegou a ficar amigo de algumas dessas vítimas, como o presidente Salvador Allende no Chile. Por último (em nossa lista e não nos feitos desse autor), sua obra traz ainda um enorme registro desse difícil lugar que é o Oriente Médio, justamente na época em que golpes e contra-golpes marcaram seu destino e levaram-nos para a situação atual, cheia de contradições. Nessa categoria reside a importância de O Xá dos Xás, escrito em 1982 e recém-lançado em português pela Companhia das Letras.
Nesse livro, Kapuscinski relata in loco a obra e a queda de Mohammad Reza Pahlevi (1919-1980), último Xá do Irã, deposto pela Revolução Islâmica, em 1979, que teve como comandante o aiatolá Ruhollah Musavi Khomeini, e que originaria mais tarde o regime autoritário que hoje dá tanta dor de cabeça aos Estados Unidos.
Mas o que interessa (ou deveria interessar) hoje na leitura deste livro é o seu “anacronismo”. Justamente por não estar embebido com a pesada carga ideológica sobre o rumo que essa Revolução tomará, Kapuscinski é capaz de descrever um cenário hoje esquecido: a de que tal mudança política radical foi vista, aos olhos de muitos intelectuais ocidentais (inclusive Michel Foucault), como esperança de um mundo mais justo, numa época em que se sabia que tal possibilidade já não mais viria nem da Europa, nem da URSS, muito menos dos Estados Unidos. Afinal, num primeiro momento, os grupos de luta contra a monarquia pró-EUA eram formados por liberais, democratas, movimentos de esquerda e outras formas de governo alternativas ao que vinha se fazendo no ocidente (infelizmente, também havia os de tendência religiosa autoritária, que acabaram subindo ao poder).
Em O Xá dos Xás é visível essa empolgação, se não por parte do autor (que não se posiciona exatamente “neutro”, mas com certa “distância” nem sempre desvinculada da empatia – o que é uma qualidade enorme num jornalista), por parte dos atores que dela participaram. Se, em alguns momentos, o jornalista polonês foi criticado por não se mostrar “indignado” com o processo revolucionário – como quando fala da tomada da embaixada norte-americana, no qual os rebeldes fizeram diplomatas e funcionários de refém – é porque Kapuscinski, já com os seus 50 anos, sabe que nenhum movimento de destituição de um governo violento ocorre sem violência. Cabe esperar que essa outra violência saiba se regular e se suprimir, dando margem para uma justiça social.
Para entender melhor a tragédia que era o regime do último Xá do Irã, Kapuscinski descreve (ou deixa as pessoas descreverem) o absurdo contraditório que tomou o país, em que a maior parte da população vivia na miséria, ao adotar (ou ser obrigada a adotar…) uma política de modernização a todo o custo, determinada a tornar o Irá na quinta maior economia do mundo, com base apenas no petróleo. Assim, são narradas empreendimentos quixotescos, como a compra indiscriminada de armamentos sem que houvesse ninguém que soubesse manejá-los.
Seguiu-se a isso o empréstimo obsessivo não só de dinheiro, mas de mão de obra especializada, o que acabou criando um rombo nos cofres públicos. A partir daí, devido a “incompreensão” da população, práticas de tortura e de assassinato começaram a se tornar parte dessa política econômica de estado – algo que está muito bem descrito nas páginas mais avançadas do livro.
O enorme mérito de ter esse livro publicado hoje é justamente sua inatualidade, algo próximo do que Nietzsche chamava de “ extemporaneidade”: ele não se localiza fora do tempo, nem se acomoda no mero “presente”, mas investe contra a própria história para tirar dela um pensamento que perdura enquanto postura frente a brutalidade e a ignorância.
Saber o que ocorreu com o Irã – da luta contra a injustiça para a instauração de uma outra injustiça – é mais saudável do que comprar explicações sobre a pretensa intolerância inerente a certas culturas, tal como estão sendo vendidas por aí. Kapuscinski escreveu uma história do século XX a partir dos seus “resíduos” – da violência intensa deixada ao lado pelos países hegemônicos que as controlavam – e que hoje merece uma atenção multiplicada em mil.
Fonte: Blog Meia Palavra, em 12/03/2012
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