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ideia da pesquisa deliberativa é simples. Uma amostra representativa da
população é selecionada. Em seguida, eles são convocados para um
debate. A finalidade é que as pessoas se pronunciem a favor ou contra o
projeto. No final, todos são novamente inquiridos, o que permite
entender como sua visão inicial evoluiu
por Ernesto Ganuza*
As democracias contemporâneas estão diante de um grande desafio. De um lado, os cidadãos estão se afastando das instituições políticas tais como funcionam atualmente, levando os governos e as administrações públicas do mundo inteiro a conceber novas formas de participação política. De outro lado, o sistema representativo cria uma divisão de tarefas que, por definição, deixa pouca liberdade para o cidadão comum. Os próprios partidos políticos sustentam a ideia de que essa repartição dos poderes fundamenta a legitimidade das autoridades e que qualquer outro princípio está fadado ao fracasso. O cidadão comum fica então confrontado a uma situação absurda: ele não pode decidir por si próprio nem ter uma ideia precisa do funcionamento do sistema político. E, no entanto, há quem realmente gostaria de se envolver. Mas como?
Entre as ferramentas disponíveis, existe a pesquisa deliberativa, inventada pelo cientista político norte-americano James Fishkin de acordo com o princípio das pesquisas de opinião. Seu objetivo é incorporar odemos (o povo) à decisão política por meio do debate, mas sem alterar a divisão das tarefas inerente à democracia representativa. A ideia é simples. Uma amostra representativa da população é selecionada e entrevistada. Em seguida, os participantes são convocados para um debate no qual recebem de especialistas de grupos de interesse informações detalhadas sobre o assunto em discussão. A finalidade é que as pessoas possam se pronunciar a favor ou contra o projeto considerado. No final do processo, os participantes são novamente inquiridos, o que permite entender como sua visão inicial do problema evoluiu.
As pesquisas deliberativas são concebidas, de um lado, para determinar o estado inicial da opinião pública e, de outro, para obter por meio da deliberação o ponto de vista de um público bem informado. Contudo, elas introduzem um elemento antecipador, uma vez que evidenciam como podem modificar a opinião pública a respeito de uma questão. Finalmente, de um ponto de vista normativo, elas dão uma ideia do que os cidadãos pensariam se fossem mais bem informados e mais envolvidos nos processos políticos.
Estresse hídrico na Andaluzia
A maioria das pesquisas foi realizada a título experimental. Sua organização ainda tem um custo elevado e requer certo conhecimento. Isso posto, algumas administrações públicas, como a da região da Andaluzia, recorrem a esse expediente, pois o consideram um novo modo de gestão pública. Foi o caso da AAA, a Agencia Andaluza del Agua, que em 2008 realizou uma pesquisa deliberativa. Segundo uma perspectiva de “bom governo”, a União Europeia impôs que as autoridades do setor de recursos hídricos esclarecessem suas operações antes de 2015. A reforma era um assunto delicado porque a água constitui um bem escasso naquela região árida. No caso da Andaluzia, fala-se até em estresse hídrico: a demanda é superior que a quantidade disponível. O desafio era, portanto, modificar as relações entre os atores econômicos do setor e os consumidores de água, reconhecendo por outro lado que o rio precisava ser “alimentado” ao longo do ano.
Foi nesse contexto que a AAA decidiu lançar a discussão.Duas razões a motivaram. A primeira é que existe um antagonismo radical entre os grupos de interesse envolvidos com a água (por exemplo, entre os agricultores e as organizações de defesa do meio ambiente). A segunda é a clara preferência demonstrada pela população (de acordo com as pesquisas deliberativas) em dar continuidade às grandes obras de infraestrutura destinadas a melhorar o armazenamento da água, obras essas que as novas regulamentações pretendiam paralisar em razão da exploração demasiada dos rios andaluzes. Levando em conta essas contradições, o governo local percebeu a vantagem de lançar um debate, oferecer informações à população e esperar sua opinião após a deliberação.
A pesquisa deliberativa coloca os grupos de interesse no mesmo nível, o que é mais favorável para a população do que para a administração pública, pois as posições são explicadas em linguagem que o homem comum pode entender. Os cidadãos descobrem assim algumas realidades. Por exemplo, somente 25% dos participantes sabiam que a agricultura consumia quatro quintos dos estoques de água disponíveis da região. Após o processo, 90% deles haviam assimilado essa informação. Uma análise detalhada das operações confirmou que o dispositivo modificou a ideia que os cidadãos tinham dos riscos ambientais, bem como das soluções para melhorar o gerenciamento do setor. O resultado foi que a maioria abandonou a ideia de construir grandes infraestruturas de armazenamento e privilegiou a economia da água na agricultura.
Por fim, os participantes conquistaram um sentimento de “tomada de poder” ou de “eficiência política”. Eles se sentiam mais competentes para falar sobre a água e expressar uma opinião. Também compreenderam que a pesquisa deliberativa lhes oferecia a possibilidade de participação, nos limites do razoável, na decisão política e fazia que se sentissem ativos na evolução da região sem para tal se colocarem na posição dos partidos políticos. Os grupos de interesse, em contrapartida, não perceberam a experiência tão positivamente, questionando seu alcance e sua eficácia, em especial porque a pesquisa deliberativa pressupõe envolver em uma decisão capital cidadãos que não são especialistas. Na opinião desses grupos, o demosnão tem lugar nas engrenagens da gestão pública. Para a administração, a experiência foi positiva, mesmo se teve de traduzir em normas jurídicas resultados que não atendiam ao problema principal: resolver de uma vez por todas o conflito de interesses entre grupos antagônicos sobre a questão da água.
Atualmente, a ideia de criar fóruns participativos é amplamente difundida. No entanto, o problema com o qual se confronta a pesquisa deliberativa, assim como todas as ferramentas participativas, é a transposição das propostas e das reflexões para a esfera política. No caso da pesquisa deliberativa, a administração cria um espaço de discussão destinado a responder às perguntas que lhe são feitas em um caso particular (por exemplo, a água). Isso significa que os cidadãos intervêm de maneira pontual na formação da decisão administrativa. Por enquanto, tal processo não é aberto nem transparente; ele fica desconectado da vida dos habitantes. Os participantes do processo andaluz descrito acima não souberam o que se passou depois que voltaram para casa. A sociedade em geral não ficou sabendo que houve um debate sobre a água. A administração dispõe de certa liberdade em relação ao grau de envolvimento do demos: a distribuição tradicional dos poderes não é modificada – o que satisfaz os grupos de interesse, que podem continuar a se comportar como se nada tivesse acontecido.
Estimando-se que a pesquisa deliberativa constitua uma caixa de ferramentas eficiente que permite a participação da população em debates técnicos, é preciso então refletir sobre o papel que ela deve ter no processo das decisões administrativas. Concebida de maneira isolada, ela possibilita novas articulações entre os atores sociais e os atores políticos, mas também permite que a administração utilize os resultados obtidos da maneira que lhe convier. Diferentemente do que ocorreria se os habitantes consultados pelos poderes públicos também pudessem pedir que o governo prestasse contas (como é o caso na Islândia) e acompanhar o andamento de suas propostas. Afinal, trata-se de saber se a vontade política deve ser o resultado de mecanismos deliberativos ou da mão invisível das negociações.
(*) Ernesto Ganuza é pesquisador de sociologia do Instituto de Estudos Sociais Avançados (Iesa) de Córdoba, Espanha
Fonte: Le Monde Diplomatique, em OUT/2011
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