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sábado, 12 de maio de 2012

#Música Manguebeat: 20 anos de uma estratégia

Inaugurado em abril de 2009, o Memorial Chico Science funciona em um dos 63 edifícios históricos que cercam o Pátio de São Pedro - um surpreendente oásis de sossego escondido no caótico centro do Recife. Nas paredes da sala principal, modesta, figuras e fotografias do artista estão dispostas em ordem cronológica, acompanhadas de pequenos textos que contam a trajetória musical do olindense Francisco de Assis França, morto em um acidente de carro em fevereiro de 1997.

Cláudia Guimarães/Folhapress / Cláudia Guimarães/Folhapress
Chico Science (esq.) e Fred Zero Quatro, em foto de 1995: "movimento" manguebeat surgiu a partir de um texto para divulgar festa que acontecia desde 1991

Nascido um ano antes, o estudante Fernandinho da Alfaia (nome fictício), de 16 anos, matou aula em uma sexta-feira quente do mês passado para gastar a tarde no memorial. Visitante contumaz e íntimo dos funcionários, o rapaz chegou de mochila, óculos de grau e fones de ouvido, uma hora antes do horário marcado para o último dia de comemorações ao aniversário de Chico Science, nascido em 13 de março de 1966. A semana festiva se concentrou em debates sobre ativismo na internet e terminou com uma oficina de "cozinha mangue futurista".

O ano de 2012 marca duas décadas do surgimento do manguebeat, que ficou conhecido mundo afora como "movimento", apesar de seus precursores relativizarem o rótulo. "Talvez a melhor definição seja 'cena'. Movimento passa uma ideia de algo mais programático, padronizado", defende Fred Zero Quatro, líder do Mundo Livre S/A e um dos idealizadores do manguebeat, ao lado de Chico Science. Os 20 anos da "cena" são contados a partir da publicação, em 1992, do manifesto "Caranguejos com Cérebro", escrito pelo próprio Fred Zero Quatro, que é jornalista.

No sofá de seu escritório, que fica em uma galeria no bairro das Graças, zona norte do Recife, Fred conta que, a exemplo do "movimento", o texto não era exatamente um manifesto. O objetivo, segundo o músico, era divulgar uma festa que ele, Chico e outros artistas vinham promovendo desde 1991, a Viagem ao Centro do Mangue. "Era um release para a imprensa, que eu escrevi no apartamento de uma namorada. Lá do alto, vi a manifestação pelo impeachment do Collor. Isso, unido ao fato de eu não gostar daquela linguagem careta de release, acabou dando essa pegada de manifesto", esclarece.

Embrião do manguebeat, a festa era palco de bandas de estilos variados, mas as experimentações e misturas de ritmos acabaram sobressaindo, em especial o rock com cavaquinho do Mundo Livre e a batucada psicodélica da Nação Zumbi. A efervescência cultural ali desencadeada inspirou outras vertentes, como cinema, artes plásticas, design, literatura e gastronomia. A imprensa da época empacotou tudo em um movimento e os artistas surfaram a onda. "Essa coisa de movimento foi mais do que tudo uma estratégia de marketing", define Fred Zero Quatro.

Até mesmo a política cultural do Recife acabou influenciada, lembra o secretário municipal de Cultura, Renato Lins, batizado nos anos 1990 como "ministro da informação" do manguebeat. Apesar do tom de zombaria, o apelido revela traços de movimento ideológico. Ao reverenciar personagens revolucionários em "Monólogo ao Pé do Ouvido" (1994), Chico Science menciona os Panteras Negras americanos, que tinham no jornalista Mumia Abu Jamal o seu "ministro da informação".

Cia da Foto / Cia da Foto
Formada há 11 anos, a banda Mombojó é uma das mais populares da nova geração do Recife; "O espírito do manguebeat é a troca", afirma vocalista Felipe S. (dir.)

De acordo com o secretário de Cultura, algumas palavras de ordem do movimento acabaram institucionalizadas, especialmente no que diz respeito à programação cultural da cidade, "que abriu os palcos principais, e não apenas os secundários, para a galera fazer todo o tipo de experimentação". O próprio Carnaval, antes relegado ao Galo da Madrugada, ganhou uma programação ampla, adotando, inclusive, o nome de Carnaval Multicultural do Recife.

Apesar da inexistência de qualquer estética própria, a mistura de ritmos acabou se tornando a principal marca do manguebeat, no palco e na cozinha. O chef Danilo Martinez, por exemplo, incorpora tradição e tecnologia ao que chama de receitas "mangue futuristas". Na oficina que ministrou no Memorial Chico Science, ele apresentou seu caranguejo com farofa japonesa e espuma de limão. "Quando pego a técnica francesa e misturo ao caranguejo e à gastronomia molecular, isso é mangue", ilustra. A aula incluiu a exibição simultânea de um documentário crítico à indústria do alimento, sucedido da trilha sonora de Jabá Pureza e os Lanterninhas Viajantes.

Enquanto esperava o início da aula de culinária - a de geometria já estava devidamente enforcada -, o estudante Fernandinho da Alfaia contou que mora a poucas ruas da casa onde Chico Science viveu, no bairro de Rio Doce, periferia de Olinda. Disse, no entanto, que a paixão pelo manguebeat foi herdada de um tio. Perguntado sobre o conteúdo de seu MP3 player, o jovem enumerou alguns dos artistas tidos como a nova geração do manguebeat: Academia da Berlinda, Orquestra Contemporânea de Olinda, Mombojó e Karina Buhr.

Perde tempo quem tenta encontrar unidade estética entre as bandas preferidas do rapaz. O produtor pernambucano Missionário José diz que a influência do manguebeat sobre esses artistas é muito mais de atitude do que musical. "Ninguém está preocupado em clamar para si a herança do movimento mangue. Como ele próprio propunha a renovação, este processo de herança acaba dificultado. É difícil você identificar hoje bandas de manguebeat. Você reconhece traços em várias delas, pode até traçar uma árvore genealógica, mas musicalmente é difícil", afirma.

Em uma entrevista, Chico Science foi desafiado a projetar o futuro da música da Nação Zumbi, que ele próprio considerava uma incrementação (sic) dos ritmos tradicionais de Pernambuco com o que estava acontecendo no cenário pop mundial. Não havia, portanto, como adivinhar o que a parabólica cravada na lama do manguezal poderia captar. "Há uma estética meio futura até, porque tem coisas que a gente não sabe nem o que vai acontecer ainda, mas a gente tem certeza que, lá na frente, a gente pode jogar as coisas de outro jeito", dizia Chico.

Mais de 15 anos após sua morte, a Nação Zumbi se consolidou como referência na música brasileira, com sete discos lançados. Olhando para o retrovisor, o baixista Alexandre Dengue afirma que a mudança dos músicos para o Rio de Janeiro e, mais tarde, para São Paulo, ajudou a moldar o estilo atual. Segundo ele, cresceram as influências do afrobeat e de groove no som, que ficou mais pesado. As letras também mudaram. "O Chico era mais adepto da crítica social e tal. O Jorge [Dupeixe, atual vocalista] não tem muito este perfil", explica.

Ao ponderar sobre as diferenças musicais dentro do manguebeat, Fred Zero Quatro não perdeu a chance de alfinetar os "rivais" baianos. "O pessoal de lá costuma apostar na fórmula que dá certo, por isso acaba surgindo muita gente com som parecido. Apesar de muitas diferenças musicais, no próprio tropicalismo você ainda percebia uma linha melódica, um jeito parecido de escrever. Pernambucano não admite imitação, a originalidade é fundamental", diz.

A tese é corroborada por Felipe S., vocalista do Mombojó. Formada há 11 anos, a banda é citada como um dos principais representantes do legado do manguebeat. "O espírito do manguebeat é a troca. Ninguém quer coisa parecida. A gente pegou a cidade depois que Chico já tinha morrido. Víamos [as bandas] Eddie e Devotos. Nação e Mundo Livre também influenciaram. Você acaba assimilando alguma coisa e fazendo do seu jeito", conta.

Influenciada pelo manguebeat, a Academia da Berlinda costuma atrair multidões para seus shows em Olinda

Outro grupo diretamente influenciado pelo "movimento" é a Academia da Berlinda, que costuma atrair multidões para seus shows no mercado Eufrásio Barbosa, em Olinda, com uma fusão da cumbia e do reggae com ritmos locais, como coco e ciranda, tudo sem perder o sotaque olindense. Seus músicos e fãs se definem como adeptos ao "Original Olinda Style", espécie de código de conduta dos moradores antenados à riquíssima cena cultural de Olinda, a exemplo do que aconteceu há 20 anos, no Recife, com os "mangue boys" de Chico Science e Fred Zero Quatro. "A gente começou na música nos grupos de maracatu, e começamos nos grupos de maracatu por causa de Chico Science e Nação Zumbi", diz o baterista da banda, Irandê Naguê.

A abertura do mercado nacional para as bandas pernambucanas seja talvez o principal legado do manguebeat para sua terra. "A cidade continua revelando novas bandas e o mercado vê melhor. O Recife não surpreende mais, já está estabelecido. Vejo hoje Belém em um momento parecido com o que rolou no Recife há 20 anos", alerta o vocalista do Mombojó. A capital paraense vive, de fato, uma agitação cultural intensa, com destaque para o tecnobrega de Gaby Amarantos, que recentemente foi personagem de uma matéria do jornal britânico "The Guardian".

Com melhores possibilidades, muitas bandas novas do circuito Recife-Olinda estão seguindo o rastro de antecessores rumo a São Paulo. O resultado é um intercâmbio crescente entre os músicos, que acabam tocando projetos paralelos com colegas de outras bandas, caso de Dengue, que trabalha com o Mombojó: "Vejo uma espécie de reencontro. Estamos transferindo o Recife para São Paulo, a irmandade está crescendo como se fosse uma nova porta dentro daquela que já foi aberta".

Ninguém, contudo, se arrisca a dizer se a nova cena - estratégia, ou seja o que for - ainda pode ser enquadrada no contexto manguebeat. Mas se o que não tem definição definido está, Chico Science pode ter dado a melhor pista na música "Cidadão do Mundo", de 1996: "é o zumzumzum da capital".

Fonte: Jornal Valor Econômico, em 11/04/2012

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