Em 1995, Tony Blair, então líder do Partido trabalhista no Parlamento, tomou um avião para participar de um encontro de executivos da News Corporation na Austrália. Lá manteve longas e amistosas tertúlias com o chefão Rupert Murdoch. Na busca desesperada de apoio para encerrar um longo período de jejum do Partido trabalhista, sistematicamente derrotado pelos conservadores nas eleições gerais, Blair faria mais tarde um confissão, ao mesmo tempo penosa e reveladora. Ele disse a um historiador do Partido trabalhista que era “mais aconselhável cavalgar o tigre do que ter a cabeça decepada por ele”.
Na eleição anterior, o candidato trabalhista Neil Kinnock foi destruído pelo conglomerado midiático de Murdoch. Os ataques culminaram na primeira página do the Sun no dia das eleições. O jornal colou um fato de Kinnock dentro de uma lâmpada. A manchete proclamava: “Se Kinnock vencer hoje, o último que deixar a Inglaterra, por favor, apague a luz”.
Blair venceu as eleições gerais e tornou-se primeiro-ministro da era do assim chamado Novo trabalhismo, um recuo conservador que não tinha nada de novo e muito menos de trabalhismo. Nas novas relações com o mogul das comunicações, Blair abriu as portas de Downing Street para os executivos do Grupo News International. Rebecca Wade, mais tarde Brooks, editora do News oi the World e queridinha do patrão, ganhou alguns quilos nos frequentes jantares oferecidos pela senhora Blair, a dinâmica e charmosa Cherie.
Dial M for Murdoch (Disque M para Murdoch, em português), o livro de tom Watson e Martin Hickman, é um relato devastador das relações incestuosas entre o conglomerado de mídia de Murdoch, a polícia e as lideranças políticas inglesas. A narrativa desvela um jogo de poder “barrapesada” que envolvia a proteção descarada dos interesses empresariais do gigante das comunicações. Em troca, os mandatários de turno ganhariam proteção contra as investidas das manchetes, sempre afiadas no mister de “assassinar personalidades”.
Presenteado anteriormente com concessões legais da senhora thatcher que permitiram o avanço sem limites do seu império, Murdoch não descansou. Às vésperas da ruína de suas práticas de intimidação e chantagem, embriagado pela impunidade, o truculento e impiedoso senhor da informação reivindicava c controle da Sky News, sob o patrocínio de Jeremy Hunt, ministro do atual governo conservador.
Watson e Hickman fazem uma incursão prolongada nos novos métodos do chamado jornalismo investigativo do terceiro milênio. Descobrem que “muitos repórteres usavam os serviços de detetives particulares que poderiam acessar rapidamente um crescente volume de informações armazenado nos computadores”. Esses detetives conheciam oficiais de polícia, funcionários da Receita e empregados das companhias telefônicas empenhados em fornecer meios de invadir e gravar as ligações.
Inicialmente, tais cometimentos eram reservados para bisbilhotar a vida de figurões da vida política e celebridades da televisão e dos esportes. Não demorou para a máquina de escândalos e de destruição de reputações assestar baterias contra a vida dos cidadãos comuns.
A cadeia dos jornais mais vendidos da Inglaterra criou um verdadeiro “mercado negro de informações colhidas ilegalmente”. Elas iam desde inquéritos policiais até a compilação de registros hospitalares, eom o propósito de expor fragilidades e intimidades dos cidadãos em geral. O frenesi da informação espetacular, do furo a qualquer custo, juntou-se ao poder de intimidar as autoridades, as grandes, as médias e as pequenas, para ganhar dinheiro e blindar suas façanhas e abusos contra os risco de interferência do poder público.
As tropelias da mídia contemporânea, sobretudo suas alianças com o crime organizado, deveriam renovar o debate sobre a liberdade de informação e de opinião. Esse debate não pode ser jogado para baixo do tapete. Enfrentá-lo tornou-se ainda mais crucial para a democracia moderna. Os meios de divulgação e de formação de opinião vêm se concentrando, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos dos negócios e da alta finança, como denunciou em tom de alarme, o filósofo Jürgen Habermas em artigo recente.
No caso dos mídia, dada a peculiaridade da mercadoria colocada à venda, o objetivo natural e legítimo de ganhar dinheiro formou uma unidade inseparável e ameaçadora com o desejo de ampliar a influência e o poder sobre a sociedade e a política. Esses grupos de comunicação, não raro, colocam em risco sua condição de instrumentos legítimos de circulação de informações, do exercício da crítica e
de estímulo à controvérsia. A não aceitação intransigente, por parte dos meios de comunicação, do debate em torno de questão tão importante para o aperfeiçoamento da democracia pode ser interpretada como pretensão do exercício do controle social e político sobre a opinião e os direitos dos cidadãos.
Numa sociedade de massa, a construção da notícia, a censura da opinião alheia e a intimidação sistemática podem “aparecer” por algum tempo aos olhos do público como afirmação do direito de opinar, de informar e de defender a comunidade. Mas é improvável que isso persista. O risco maior é o da reação autoritária e fascistoide contra os valores mais caros ao projeto da modernidade. Se transformadas em métodos sistemáticos de cercear a autonomia crítica e a liberdade dos cidadãos, as liberdades de expressão e de opinião não terão vida longa.
Nesse fim de século XX, as sociedades modernas procuraram avançar em relação às conquistas dos liberais. O problema não é mais, apenas, do direito e da liberdade de quem exerce de fato o direito de informar ou opinar.
Há que abandonar as ilusões funestas dos regimes totalitários. É preciso deixar para trás as pretensões de impor aos cidadãos um sistema unânime de valores, de sufocar toda a espontaneidade da vida e de proporcionar o falso conforto das certezas incontestáveis.
Parece imperioso, portanto, reconstruir os fundamentos da ordem social com a argamassa da igualdade, da liberdade, do respeito à pessoa e da proteção à espontaneidade do mundo e da vida.
A democracia que dizemos prezar e defender só poderá avançar se for militante e esclarecida. Não há liberdade sem esclarecimento. Muitos ainda não compreenderam que o liberalismo é insuperável em sua crença de que a unidade pacífica da sociedade moderna não será alcançada sem o respeito e o estímulo à experimentação livre.
Mas outros ainda não aceitaram que a democracia moderna só sobreviverá se tiver a audácia de conciliar aqueles valores com o combate à desigualdade e ao particularismo destrutivo dos poderes não eleitos, hoje empenhados na espetacularização da política e na degradação do debate público.
Fonte: Revista Carta Capital, em 16/05/2012
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