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domingo, 20 de maio de 2012

#Literatura Retrato do artista no campo de centeio

Há autores que não são nem clássicos nem experimentais, mas que têm um estilo único, próprio, sem precedentes e/ou sucessores. Esse é talvez o caso de Leonard Cohen, um poeta e escritor que acabou muito mais conhecido como cantor e compositor.


Antes de lançar A brincadeira favorita, em 1963, aos 29 anos, já tinha dois livros de poesia publicados – um deles, The spice-box of Earth (61), bastante popular entre público e crítica – e se preparava para o terceiro (o polêmico Flowers for Hitler, de 64).


Se os poemas revelavam muito de seus temas prediletos – o amor, o sexo, a religião, a morte, a condição judaica, a própria literatura – em A brincadeira favorita Cohen deixou definitivamente moldada sua persona autoral, que se estenderia à música, a partir do primeiro disco, espartanamente chamado Songs of Leonard Cohen, de 67.

É um romance de formação – e no caso, pode-se pensar tanto na formação do personagem central, Lawrence Breavman, como na do próprio autor (até porque as biografias de ambos têm muitos pontos em comum).

Voltando ao primeiro parágrafo, há quem o compare ao Apanhador no campo de centeio, muito por conta da “rebeldia juvenil” de seus heróis (ou anti-herois, fica por conta do leitor/a). E há os que, como o escritor e crítico Michael Ondaatje – também cidadão canadense – vêem no romance um reflexo do Retrato do artista quando jovem, de Joyce. Um crítico entusiasmado chegou a dizer: “James Joyce não morreu. Ele vive em Montreal com o nome Leonard Cohen e escreve do ponto de vista de Henry Miller.”

Mas o próprio Ondaatdje alerta que essa “não é a versão contemporânea de um clássico”, e aponta para sua originalidade: “O livro tem a cadência de um longo poema em prosa, do qual as cenas emergem como enigmáticos episódios de vida própria, e não partes de uma narrativa convencional. Como num poema, os silêncios, espaços e o que não é dito são essenciais para a atmosfera do livro.”

Inicialmente intitulado Beauty at close quarters, A brincadeira favorita foi reescrito pelo menos cinco vezes (o que afasta qualquer tentativa de ligar diretamente Cohen aos beatniks…). Numa entrevista recente, dada para promover Old Ideas, seu novo disco, Cohen disse que só conseguiu terminar o livro graças à proprietária do apartamento que alugava: “ela vivia ameaçando me botar pra fora caso eu não escrevesse três páginas por dia”.

Talvez por isso o livro tenha um caráter fragmentário, todo feito de pequenos capítulos e até alguns momentos de “corte” cinematográfico, ainda que a prosa tenha um caráter poético, dada a variedade de boas metáforas e achados (“no sono, todo homem é filho único”; “sabe porque gosto das mulheres comunistas? Porque elas não acreditam no mundo”; “uma cicatriz é o que acontece quando a palavra se faz carne”, etc.) . Cohen chega a falar em “zoom” e câmera” em algumas descrições, o que resulta num clima a um só tempo realista e ligeiramente onírico.

 

A tônica de A brincadeira favorita pode ser entendida como um jogo permanente de contrários. A mencionada brincadeira, para ficar no mesmo exemplo, revela um choque entre o pueril e o sexual, o inocente e o cruel. Na algo sadomasoquista fantasia pré-adolescente, a amiga Lisa se faz de prostituta enquanto Breavman é um soldado de partida para o front. Ao longo do livro esse tipo de dicotomia dita os pensamentos e ações do personagem central, sempre indeciso entre o hedonismo egoísta e a postura socialmente “correta”, o prazer sensual e o dever moral.

Alterego “oblíquo” de Cohen, que não gostava de ver seu livro descrito como um roman à clef, o poeta Breavman é acompanhado por um narrador indefinido (que às vezes se confunde com o próprio personagem, na forma de diários e pensamentos) da pré-adolescência em Montréal, pouco antes da morte do pai, à liberdade artística e sentimental de seus vinte e poucos anos, entre Nova York, a cidade-natal e outros lugares (nem todos geográficos).

O escritor Cohen também passou por vários lugares enquanto gestava o livro: Nova York, a casa canadense dos pais, a paradisíaca Hydra, ilha onde vivia erraticamente com Marianne, a bela norueguesa mãe de seus dois filhos (Adam e Lorca), e até Cuba, para onde foi, em 61,num arroubo de entusiasmo com a revolução.

Mas a revolução para ele estava nas mulheres, na beleza das palavras, no senso de humor agudo dos amigos. Nesse sentido, o livro é um desfilar de personagens ora encantadores, ora patéticos, que sempre se vêem envoltos na gentil ironia do autor. Temos o implacável Krantz, uma muralha de cinismo e doçura;  (Dear) Heather, a empregada que tocava alaúde e se deixava levar pelos truques de hipnotismo; Tamara, a estudante comunista de pernas insuperáveis; a indiscutível Shell, mulher de beleza perfeita e, para Breavman, a própria definição do amor; e, entre outros, Martin, o pequeno autista no campo de férias, cuja “loucura” e marginalidade atraem nosso herói.

E, pra não dizer que não falamos de música, já que se trata de um livro do compositor e cantor de “Suzanne”, “Hallellujah” e “I’m your Man”, o próprio violão ganha status de personagem, dentro do qual “havia um aroma como o das caixas de charuto que o pai costumava guardar”.  É com ele, afinal, que Breavman exerce melhor seu poder de sedução – melhor até do que o hipnotismo, que lhe garante o corpo e a calcinha de Heather.  A música que sai de suas cordas quase o convence de criar uma relação sagrada com as mulheres, “a cidade lá fora e consigo mesmo.”


Com esse mesmo espírito, Cohen lançaria dois anos depois o Beautiful Losers, romance em que também o sexo se apõe a uma religiosidade estética, “laica”, em que as frases podem soar ora como haikais ora como belos enigmas de uma experimentação sensual, frequentemente irônica, autocrítica mas também complacente e hipnótica, não como os poderes de Breavman, mas como a própria voz do autor.

Fonte: Blog da Cosac Naify, em 20/04/2012

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