Há algumas décadas, durante o período da chanchada, o cinema obtinha resultados de bilheteria impressionantes. Ironizando temas populares como a malandragem, o sexo e a religião (católica), o cinema “encontrava o seu público”, como se dizia. Entretanto, as classes mais altas e os intelectuais criticavam esta diversão leve, e crescia a crença que até hoje cola à produção nacional: a de uma má qualidade, de uma incapacidade a fazer melhor ou tão bem quanto os americanos.
Pois passaram-se os anos, o cinema enfrentou períodos de seca durante o governo Collor, e foi se reerguendo com a retomada. Ressuscitou-se logo uma certa ideia de profissionalismo, de conhecimento técnico, de “mostrar na imagem que a gente sabe fazer bem”. Os filmes brasileiros mais ricos de hoje podem se dar ao luxo de ter trilha sonora composta por Philip Glass (Nosso Lar) e explosões espetaculares (Dois Coelhos).
Que o sincretismo cultural de “Billi Pig” sirva de modelo para o cinema nacional.
Ao cinema popular, sobra um espaço quase exclusivo às adaptações de programas televisivos, seja no conteúdo, seja na imagem. Como o “Vídeo Show”, programa de televisão em que a Rede Globo faz propaganda da Rede Globo, os Globo Filmes procuram da mesma maneira funcionar como um programa de sustentação para a marca, como marketing par lançar o nome dos próximos atores da novela das oito.
É neste sentido que se felicita a chegada às telas de Billi Pig, uma experiência às antigas, popular não nos resultados de bilheteria, mas na temática, na estética e na tentativa de sincretismo cultural. E que leva, vale lembrar, o logo Globo Filmes, mas que conseguiu felizmente escapar à pasteurização criativa. O filme se apoia nas elementos da cultura popular, sem fazer apelo ao fetiche do pobre e do “outro”. Pelo contrário, ele leva a sério todos os charlatões de rua, os falsos padres milagreiros, os traficantes, as atrizes frustradas, as donas de funerárias que torcem por homicídios na cidade.
Com humor, Billi Pig ironiza e desdramatiza (ou desfetichiza) a sociedade. Os chefes do morro não são mais grandes vilões de filme de ação (como em Cidade de Deus), os líderes religiosos não são mais figuras caridosas e puras (como em Chico Xavier). O filme reestabelece, com a ingenuidade dos melhores tolos, a possibilidade de funcionamento do elevador social, a completa e fluida transição entre classes sociais, etnias e crenças distintas.
“Uma comédia para quem precisa correr”, diz o estranho slogan. Mas a ideia é de fato esta: não uma aventura, mas uma dança das cadeiras, uma permeabilidade entre as pessoas e os códigos culturais. No sincretismo assumidamente tosco do diretor José Eduardo Belmonte, o cinema brasileiro não aspira mais a ser americano, a ser profissional, a aparentar riqueza. Ele arrisca o inverossímil, põe em cena os porcos falantes, milagres, inclui uma ex-Big Brother e a faz atuar no papel de aspirante frustrada a atriz. A releitura da sociedade está condensada, mixada e distribuída em cada cena.
Por isso resta torcer que se faça mais Billi Pig do que Heleno (filme vergonhosamente elitista e parnasiano sobre o futebol), muito mais Billi Pig do que a propaganda de direita Dois Coelhos. Enquanto o cinema nacional se compõe de belíssimas obras que dificilmente chegam ao grande público (O Abismo Prateado, Trabalhar Cansa, Além da Estrada), espero sinceramente que existam ao mesmo tempo produções não tão belas, não tão artisticamente relevantes, mas que buscam enfim reestabelecer a ponte rompida entre a cultura popular e o cinema popular.
Fonte: Outras Palavras, em 14 /03/2012
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