Em uma sala refrigerada no quinto andar do SESC
Copacabana, no Rio de Janeiro, 20 pessoas pertencentes ao estrato dos 2% mais
inteligentes da Terra assistem à palestra Superdotados, Quem Somos Nós? Lá
fora, a 200 metros, jaz a areia. Faz 30 graus. O sábado ensolarado atraiu uma
multidão à praia. Mas do lado de cá da janela, entre partidas de xadrez,
debate-se quem pode ser considerado gênio, superdotado ou um simples prodígio e
o que fazer para ser respeitado por uma sociedade naturalmente inclinada a detestá-los
pelo que têm de melhor – a inteligência. Cristiane Costa Cruz, aqui para
defender a classe, descontrai o público com uma pergunta: quem assiste à série The Big Bang Theory, que aborda o mundo geek?“A pergunta seria quem não assiste”, diz um rapaz indignado. “E
que ninguém fale mal do Sheldon.” Gargalhadas seguem à menção do maior nerd da
tevê. Aqui, estão todos em comunhão.
Um slide é projetado na tela. “Mozart, assim
como Einstein, Leonardo Da Vinci e Gandhi, são exemplos de gênios.” Cris pensa
um segundo. “Meu colega que fez a apresentação pôs Freud, mas eu, como
psicóloga, me dei o direito de tirar. Freud era dotado, mas não gênio.” Apenas
uma ínfima parte dos superdotados será um, explica Cris. As pessoas é que
confundem. “‘Ah, ela é superdotada, porque não acaba com a fome na África?’
Nossa função não é essa. A sociedade é que está voltada para a idéia de
educação para todos, que nivela por baixo e favorece os menos inteligentes. Tem
de ajudar o coitadinho. Mas alguém aqui quer ser operado por um médico burro?
Se você não escolhe pessoas inteligentes para certas profissões, acaba sendo
vítima.”
Do nascente burburinho surgem histórias de
sofrimento. Um tirava notas baixas para ser aceito. Outro tentava parecer burro
para não sofrer bullying. Alguém desabafa. “Isso assassina o
superdotado.” É quando, ao sinal de Cris, o projetor crava na parede o
simbólico depoimento. “Eu, como criança de 6 anos, aprendi a ler em dois meses.
De alguma maneira, a escola conseguiu matar a minha inteligência ‘extrema’ e me
deixar somente muito inteligente. Uma vez, aos 6 anos, esqueci o livro da
escola em casa. Fingia que estava lendo no livro, li perfeitamente, pois sabia
tudo de cor. Acho que aprendi a esquecer as coisas, somente para ficar com
menos tédio. Hoje esqueço nome de tudo, do hotel em que estou, até de
namoradas.”
A Mensa surgiu para acabar com isso. Fundada em 1946, no
Reino Unido, por dois advogados em busca de “uma sociedade de pessoas
brilhantes”, é um clube “sem orientação ideológica ou política”, que pretende
“identificar e fomentar a inteligência humana para o bem da sociedade”, além de
oferecer aos superdotados uma chance de socialização. Hoje, há 110 mil
participantes “em todos os continentes, exceto na Antártida”. No Brasil, são
833. Para entrar, é preciso alcançar 98% em um teste de Q.I. reconhecido por
eles, o que dá acesso a “meios intrigantes de malhar seus músculos mentais”, como
o Brilliant Day, encontro que aconteceu em todo o mundo – e no Rio.
“Já viríamos ao Rock in Rio ver o Metallica e
o System of a Down. Unimos o útil ao agradável”, diz Mário Paulman, de 24 anos.
Mas não foi só o rock o que fez esse mato-grossense se abalar do Cerrado até
aqui. “Sou viciado em conhecimento e queria conhecer gente assim.” Engenheiro
civil, ele faz graduação em Direito e especialização em perícia. “Direito é uma
faculdade que todo mundo deveria fazer, para saber seus direitos”, reflete,
sagaz. A próxima da lista é psicologia. Com tanto conhecimento, não fica difícil
conviver com a namorada? “Fica.” Mas Paulman está acostumado. A superdotação ficou
clara cedo. “Era uma questão de notas. Altas, sempre. E também videogames. Enquanto
meus amigos jogavam futebol, eu era viciado em RPG.”
A autobiografia nerd ecoa no amigo, “viciado
em matemática”. Branco, olhos claros que rastreiam o ambiente e mãos que
tamborilam o universo, Affonso Armigliatto, mesma idade, arvora-se com naturalidade
à condição de gênio. “Primeiro fiz um teste de Q.I. na internet. Sempre tive
vontade de medir, porque tinha uma inteligência diferenciada. Aí um colega
passou no Mensa. Eu quis também.” O teste foi feito em 40 minutos e o resultado
chegará em casa, com o certificado ou uma negativa. Affonso não se abala com a
possibilidade, tão remota quanto a existência de Deus. “Não há elementos
suficientes para acreditar”, suspira. Parece que o Sheldon aventado por Cris se
materializou, em versão recém-graduada. Bazinga.
Mas é preciso ter fé, explica o advogado Waldir
Santos. Com o projeto Babunamô – o nome é uma homenagem ao sambista Riachão,
que dizia que baiano burro nasce morto –, ele busca, na periferia baiana,
superdotados sofrendo com o presente do destino. Como um pesquisador de doenças
tropicais que teve o talento reconhecido e hoje tem dois pósdoutorados e salvou
milhares de vidas. “Toda cidade tem 20 caras como ele, mas que viram
vendedores”, diz.
“Ou se matam”, interpela, da plateia, Allan Carneiro, de 43
anos, professor paraense de logística, acostumado desde cedo com a patente
superdotação. “Não que tivesse provas. Eu sentia. Só de usar óculos, a
sociedade já acha que a gente é inteligente.” Ele então ajeita os ditos-cujos e
explica por que veio. “É importante não estar sozinho. Porque aí cara, não tira
a própria vida, por não suportar a inteligência.”
Da última fileira, a
engenheira Ana Paula Porfírio levanta a mão para contar outro caso comovente.
Um colega, pesquisador nível 6 na Secretaria de Agricultura paulista,
discursava um dia sobre pesquisa e citou a Mensa. Ela, “mera” pesquisadora 1,
levantou a mão (outra vez) para dizer que era parte do clube. Ele quase
chorou. “Nunca vi tanto descontentamento na cara de alguém. Chupa!” Todos riem.
Pois é difícil ser superdotado no Brasil. “Meus mensasinhos não querem mais ir
à escola”, diz. “O de 7 está entediado, coitadinho.” Ana filosofa: “De um ovo de
cisne só pode nascer outro cisne. Mas é importante alimentar, orientar, para
que ele não se sinta um patinho feio.”
MENSA
SIGNIFICA MESA, EM LATIM
EXISTE EM MAIS DE CEM PAÍSES
SÓCIOS NO MUNDO: 110 MIL
SÓCIOS NO BRASIL: 833
PRÉ-REQUISITO: 98% DE Q.I.
Fonte: Revista Carta Capital, em 19/10/2011
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