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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O fim inesperado do maior jornal semanal britânico

Em julho, os britânicos descobriram a natureza das práticas do hebdomadário News of the World. O desvio iluminou outros: concentração das mídias, mercantilização da informação, conveniências políticas. Uma concepção de imprensa encarnada pelo magnata Rupert Murdoch

por Jean-Claude Sergeant*


A apuração da informação passou dos limites. No dia 5 de julho de 2011, o terceiro maior império midiático do mundo, pertencente a Rupert Murdoch e com 53 mil funcionários que trabalham em 4 continentes, vacilou.1 A revelação de que umjornalista do tabloide News of the World – principal tiragem da imprensa dominical britânica (2,7 milhões de exemplares), hoje fora de circulação – teve acesso à caixa postal telefônica de Milly Dowler, garota de 13 anos assassinada em 2002, provocou uma onda de indignação. Os britânicos também foram informados de que a pirataria se estendia igualmente às caixas postais das famílias de militares mortos no Afeganistão. Esse tipo de invasão de privacidade é aceito quando se trata de personalidades notáveis, mas recorrer a ela para invadir a intimidade de pessoas comuns assoladas por dramas pessoais ultrapassou os limites do aceitável, já bastante flexíveis na imprensa popularesca do país.

Assim, o News of the World tornou-se alvo de indignação. O jornal dominical comprado por Murdoch em 1969 – o primeiro investimento de sua carreira – logo se especializou na revelação explosiva de escândalos e casos de corrupção e tráfico de todos os tipos por uma equipe de jornalistas treinada na arte da infiltração e do disfarce. Essa linha editorial conduziu a redação a apurar as informações com a ajuda de meios ilícitos: das câmeras fotográficas dotadas de um poderoso zoom passou-se à pirataria das comunicações com escutas telefônicas.

Em 2006, as invasões às caixas postais dos príncipes Harry e William resultaram na prisão, por alguns meses, de dois colaboradores do jornal: Clive Goodman e Glenn Mulcaire. O diretor de redação, Andy Coulson, reconheceu a responsabilidade profissional sobre o caso e decidiu renunciar ao cargo – não sem afirmar que se tratava de um caso isolado de prática jornalística desvirtuada e que ele, pessoalmente, jamais havia autorizado ou incentivado a escuta de caixas postais telefônicas como método de apuração. O ato de ética jornalística, porém, não convenceu, levando-se em conta os precedentes de Coulson: em março de 2003, Rebekah Brooks, então diretora de redação do TheSun – tiragem mais importante da imprensa britânica e também propriedade de Murdoch desde 1969 –, havia admitido que membros dos serviços policiais recebiam gratificações em troca de informações. Diante da acusação, Coulson afirmou que os jornalistas sob sua direção eram orientados a respeitar as leis, contudo, estavam prontos para transgredi-las em nome do interesse público.

O The Guardian manteve, tenaz, a vigilância sobre o caso de espionagem de mensagens telefônicas. Defensora de posições social-democratas − ao lado do The Independent e, às vezes, do The Daily Mirror −, a publicação diária e seu complemento dominical, o The Observer, opuseram-se constantemente à crescente influência de Murdoch sobre a mídia e a vida política britânicas. Em setembro de 2010, Nicholas Davies relatou o testemunho de um antigo jornalista do News of the World, o que corroborou o discurso de outros cinco membros da redação entrevistados pelo Guardian: as práticas escusas do jornal dominical tinham se tornado rotineiras.

Interferência na política

Certos parlamentares denunciaram que suas caixas postais também tinham sido espionadas. John Prescott, por exemplo: o antigo número dois do governo de Tony Blair afirma ter sido alvo da atuação clandestina do News of the Worldno momento em que sua relação com uma colaboradora tornou-se pública, em 2006. Quando estava a cargo das finanças do país (1997-2007), Gordon Brown também foi alvo de profissionais da escuta telefônica contratados pelo News of the World. Nesses casos, foram postas em jogo a liberdade de expressão conferida aos parlamentares pela Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689 e a inviolabilidade do conjunto de suas comunicações segundo a doutrina que o trabalhista Harold Wilson2 havia instituído para proteger a relação entre os parlamentares e seus mandantes.

Os membros do Parlamento se mostraram preocupados desde que receberam, dois anos atrás, a denúncia mortificante de permissivismo em matéria de despesas pessoais financiadas com dinheiro público publicada pelo Daily Telegraph graças a algumas fontes que certamente foram remuneradas. Naquela ocasião, os parlamentares fecharam por alguns dias um órgão de imprensa, por menos recomendável que isso seja, para restabelecer sua integridade aos olhos do grande público. Além disso, nos setores trabalhistas, ninguém esqueceu a humilhação infligida pelo The Sun: o jornal escolheu o dia do discurso de encerramento de Brown no Congresso trabalhista, em 2009, para anunciar o apoio do periódico aos conservadores – depois de ter, mais ou menos fielmente, apoiado o New Labour (Partido Trabalhista) desde 1997.

A oposição logo compreendeu que escândalos oferecem a possibilidade de retomar a dianteira. Edward Miliband, o novo diretor do Labour, sabia que sua credibilidade era frágil e não tardou em questionar a decisão do primeiro-ministro David Cameron de, logo após as eleições de maio de 2010, nomear Coulson diretor de comunicação. Os estrategistas conservadores estavam convencidos de que esse especialista em imprensa popularesca seria capaz de contrabalancear o efeito potencialmente repulsivo produzido no eleitorado pelas origens da equipe conservadora no comando do país.3 Mas foi sensato de sua parte confiar o cargo a um homem cujo envolvimento – no mínimo tácito – com as práticas ilegais exercidas no News of the World Cameron não podia ignorar?

Ademais, o tema da escuta de mensagens de voz apareceu justamente no momento em que Murdoch tentava adquirir os 61% do capital da BSkyB, que ele ainda não detém. Principal operadora da TV por assinatura, a emissora conta com 11 milhões de assinantes e movimenta números superiores ao montante das taxas que alimentam a BBC (British Broadcasting Corporation) – cerca de 4,2 bilhões de euros. A BSkyB – produto da fusão, em 1990, da Sky Television, controlada por Murdoch, e do consórcio British Satellite Broadcasting, concebido pelos principais operadores privados da televisão britânica – oferece aos assinantes um leque de cerca de 150 canais, essencialmente de esporte e cinema, dos quais um deles, o Sky News, canal de informação 24 horas, representava um problema. É aceitável que o grupo News Corp., que já controla 40% do mercado da imprensa nacional por intermédio de sua filial News International, seja autorizado a intervir em um canal de informação (independentemente da baixa audiência)?

Em dezembro de 2010, o caso parecia solucionado. O ministro das Comunicações, Jeremy Hunt, decidiu não submeter a oferta de Murdoch à apreciação da comissão de monopólios, tradicionalmente encarregada de avaliar os riscos da constituição de posições monopolísticas. Em troca, obteve o compromisso de Murdoch de tirar o Sky News do leque de canais da BSkyB e confiar sua gestão a uma estrutura independente. Levando em conta as revelações das práticas do News of the World, alguns se perguntam: Murdoch apresenta as qualidades requeridas por um regulador do setor audiovisual – Ofcom– para que lhe seja conferida a concessão da BSkyB? Os parlamentares evocam o precedente de 1981, que havia permitido a Murdoch adquirir os títulos do grupo Times Newspapers, com o consentimento de Margaret Thatcher, sem que o ministro do Comércio da época o submetesse – como deveria fazer – à Comissão de Fusões e Monopólios. A partir desse momento, no controle de 45% da difusão dos meios de comunicação britânicos, Murdoch passou a influenciar a agenda política do país.

A mobilização dos parlamentares trabalhistas e liberais democratas, apoiada por alguns meios da Fleet Street4 e reforçada por reportagens do New York Times, conduziu a resultados espetaculares. Em janeiro de 2011, Coulson entregou seu pedido de demissão ao primeiro-ministro. Alguns meses depois, Murdoch renunciou ao projeto de comprar a BSkyB. No dia 7 de julho, James Murdoch – seu filho, encarregado das operações da News Corp. na Europa – anunciou o fechamento do News of the World, colocando na rua seus duzentos jornalistas e funcionários. Foi o fim de um dos mais antigos meios de comunicação da imprensa nacional britânica, fundado em 1843, mas que representava apenas 1% da receita do grupo. De seu lado, os mais altos funcionários da Metropolitan Police (Scotland Yard) reconhecem as próprias falhas na condução do inquérito sobre as práticas ilícitas do News of the World, limitado apenas ao jornalista Goodman e seu informante, na casa de quem apreenderam mais de 11 mil páginas de anotações, com potenciais 4 mil vítimas – material que permaneceu intocado. Em uma entrevista ao Daily Telegraph,5 o número dois da Scotland Yard, John Yates, admitiu que, focada nas ameaças terroristas, a Scotland Yard não havia mobilizado os meios necessários para levar adiante o inquérito aberto em 2006, razão pela qual o serviço seguia o princípio segundo o qual estava dentro do espectro da análise judicial apenas a captação de mensagens telefônicas que não haviam sido escutadas pelos destinatários. Yates foi finalmente pressionado a se demitir (18 de julho) depois que seu superior hierárquico, Paul Stephenson, resolveu, a contragosto, renunciar a outra função escusa que acabava de ser revelada: seu engajamento como conselheiro de um antigo diretor adjunto de News of the World. Dessa forma, ele mesmo seria escutado no contexto do novo inquérito aberto em janeiro de 2011 sobre as práticas ilícitas do jornal.

Na esperança de conter a propagação de uma crise político-midiática, que além disso obrigaria o primeiro-ministro a encurtar sua viagem à África, a News International publicou na imprensa nacional um mea culpa com o título “Putting right what’s gone wrong” [Consertando o que ia dando errado] – nota em que figuravam compromissos de pagar indenizações às vítimas da invasão de privacidade praticada pelo jornal e afirmações da vontade do grupo de colaborar com os investigadores da Scotland Yard e da comissão da Câmara dos Comuns encarregada de esclarecer os desvios de conduta do caso.

Lobo ou tigre de papel

Após a demissão – postergada por muito tempo – de Brooks (15 de julho) e Les Hinton, antigo responsável pela empresa antes de ser projetado para a direção da empresa Dow Jones (proprietária do Wall Street Journal, comprado novamente por Murdoch em 2007), a News International adotou uma estratégia de pouco alarde para tentar passar despercebida. O magnata, acompanhado de seu filho James e de Brooks, sua herdeira espiritual, aceitou comparecer, no dia 19 de julho, diante da comissão da Câmara dos Comuns reunida especialmente para estabelecer as responsabilidades de Murdoch no caso da escuta de mensagens praticada pelo News of the World. Durante as três horas de audição, Murdoch exibiu uma imagem de frágil e amnésico, expressando-se por monossílabos e afirmando, como lobo em pele de cordeiro, que nunca se sentiu tão “humilde”, para não dizer humilhado. Em relação ao caso propriamente dito, nada de exatamente novo: arrependimentos, promessas de colocar em ordem os negócios do grupo e punir os culpados – quando forem encontrados.

Por um momento, a impressão de Polly Toynbee, cronista do Guardian que escreveu sobre Murdoch em 2006, parecia acertada: “O homem político que tiver a coragem de enfrentar Murdoch talvez se surpreenda ao constatar que ele não passa de um tigre de papel”.6 Mas esse homem, aparentemente diminuído e que compareceu no dia 19 de julho diante de um pequeno número de parlamentares, não esconde sua vontade de continuar à frente do grupo midiático momentaneamente desvalorizado no mercado internacional. Se as ações da News Corp. caíram 18% entre 4 e 18 de julho, retomaram 6% logo após a audição de Murdoch pai e filho, enquanto em Londres a BSkyB valorizava 3%. Os diferentes inquéritos em curso na Inglaterra e nos Estados Unidos conduzirão à reestruturação do império de Murdoch e à marginalização de seu fundador, como desejam alguns acionários influentes? Nada é tão incerto.

Essa crise político-midiática poderia ser benéfica a vários meios de comunicação. Primeiro, porque permitiu colocar na ordem do dia a questão geral da proximidade entre poder político e mídia, e, de forma particular, a relação entre a atual equipe conservadora no poder e os dirigentes da News International. As relações amigáveis estabelecidas entre Cameron e Brooks durante as reuniões em suas residências de fim de semana foram detalhadas pela imprensa. Durante a audição, Murdoch lembrou que havia visitado o primeiro-ministro em Downing Street – entrando às escondidas pelo jardim – pouco antes das eleições de maio de 2010.

Deve-se mencionar, contudo, que essa conivência não é exclusividade dos conservadores. Não é preciso remontar ao início do século XX, quando Lloyd George, então primeiro-ministro, subvencionou a compra do Daily News, para defender sua política: basta recordar a viagem de Tony Blair à Austrália, em 1995, para encontrar Murdoch e seus colaboradores. Ele foi acompanhado por Alastair Campbell, seu conselheiro em assuntos de mídia e antigo jornalista político do Daily Mirror – que, ao assumir o Ministério das Comunicações, fez de suas relações com a mídia um forte instrumento de poder. Campbell tinha como obsessão prever a manchete do The Sun do dia seguinte e ajudar a redigi-la.

No dia 6 de julho de 2011, Chris Bryant, antigo secretário de Estado de Brown para assuntos europeus, denunciou à Câmara dos Comuns a servilidade dos dirigentes políticos em relação à mídia: “Dependemos deles, buscamos favores, fazemos que nossa vida e morte política dependam do que eles escrevem, do que publicam. E, algumas vezes, isso significa que nos faltam a coragem ou mesmo a coluna vertebral para denunciar os desvios éticos desses meios”.

O caso Murdoch evidenciou a arrogância de um grupo de mídia que se considera capaz de assegurar a vitória eleitoral do partido que decide apoiar. Basta lembrar a manchete autolaudatória do The Sun no dia seguinte à derrota dos trabalhistas de 1992: “It’s The Sun who won it!” [Foi o The Sun que venceu!]. O apoio desse jornal não seria suficiente, contudo, para fazer os conservadores ganharem a maioria absoluta esperada nas eleições de 2010.

O segundo efeito benéfico do caso é evidenciar as relações entre os serviços policiais e a mídia. As diferentes investigações conduzidas desde a emergência do caso doNews of the World revelaram que os investigadores da Scotland Yard não impulsionaram o trabalho inicial para não comprometer o grupo Murdoch. Esse procedimento é coerente com o comentário de um antigo assessor de imprensa da Metropolitan Police transferido para a redação do Mail on Sunday: “Há [na Scotland Yard] uma real admiração pela forma como o jornal [News of the World] manipula para o bem operações clandestinas que permitiram levar criminosos notórios à justiça. Isso resulta na proximidade entre a Yard e os meios de comunicação da News International”.7 A incorporação de policiais aposentados nas redações da Fleet Street facilita, sem dúvida, o acesso a fontes policiais, mas também leva a questionar a capacidade dos serviços de polícia de conservar sua liberdade de ação nos assuntos relativos ao órgão de imprensa, problema deontológico a ser resolvido por uma comissão parlamentar de inquérito.

A regulação da mídia

Por último, o caso também levanta o problema central da regulação da mídia, colocada em questão depois de duas denúncias de que a Press Complaints Commission (PCC) – instância de autorregulação criada em 1991 – classificou como improcedentes as reclamações relativas às intrusões praticadas pelo News of the World. O núcleo do debate é o problema da proteção da vida privada inscrita no artigo 3 do código deontológico (Code of Practice) da PCC, o qual prescreve explicitamente a intercepção de comunicações telefônicas e a captação de mensagens em correios de voz (artículo 10).

O fato de essa instância reguladora ser financiada pelos editores de jornais e ser constituída principalmente por membros oriundos das redações é necessariamente um problema – já identificado pela comissão Calcutt entre 1990 e 1993, quando essa instância se encarregou de refletir sobre formas de reforçar a autonomia do organismo. Em seu último relatório,8 David Calcutt recomendava a abolição da PCC – que, segundo ele, jamais havia provado sua isenção e independência de atuação – e sua substituição por um tribunal especializado com o poder de impor a publicação de retificações e desculpas, além de sancionar financeiramente os editores resistentes às resoluções do tribunal. “Todo sistema de regulação deve comportar uma forma de sanção”, insistia David, que preconizava, ademais, a adoção de um texto legislativo de proteção à vida privada, principalmente contra as incursões de jornalistas. Em 1995, o governo de John Major rejeitou as recomendações da comissão, pois considerava que a instauração de um sistema de controle regulamentado (statutory) seria interpretada como censura pelos editores de jornais – conflito que naturalmente deveria ser evitado com vistas à próxima eleição. Em relação à criação de um direito ao respeito pela vida privada, o governo argumentava – em função de sua decisão de não acatar a recomendação – que os atentados contra a privacidade tinham sido casos pontuais excessivamente midiatizados e que uma proteção como essa se chocaria com a capacidade de investigação da imprensa. Enfim, o governo retomava a seu favor a concepção de que “vida privada” é um termo muito complexo e difícil de definir.9

A tempestade desencadeada pelo caso do News of the Worldincitou o líder trabalhista e liberal-democrata Nicholas Clegg, número dois do governo, a reivindicar a refundação do modo de regulação da imprensa, demanda incorporada também pelo discurso de Cameron, que nomeou uma comissão, no dia 15 de julho, dirigida pelo magistrado Brian Levenson, unanimemente respeitado.

Composta de seis membros, dos quais dois são jornalistas, essa comissão – que tem toda liberdade para coletar testemunhos sob juramento das pessoas que decidir escutar – terá muito trabalho pela frente. Encarregada, em primeiro lugar, de preconizar um novo modo de regulação da imprensa escrita, recebeu também a incumbência de debruçar-se sobre a ética profissional dos meios audiovisuais, principalmente a BBC, muito criticada pelos conservadores por sua cobertura do caso News of the World, e sobre o funcionamento das redes sociais.

A imprensa não tardou em reagir, vendo deslindar-se por trás dessa reforma anunciada um controle que não ousa dizer seu nome: “A classe política britânica, ao considerar-se livre do jugo de Murdoch, poderia reforçar a regulamentação dos meios de comunicação. Nesse cenário, ganhar dinheiro com o setor de mídia se tornaria mais difícil”, alarmava a revista semanal The Economist, no dia 23 de julho.

Segundo o Daily Telegraph, “o primeiro-ministro declarou que não gostaria de regulamentar a imprensa [statutory control]. Mas também não quer a manutenção do sistema de autorregulação instituído pela intermediária PCC. Ele quer um organismo independente. Contudo, é inevitável que essa instância obedeça a alguma regulamentação, o que abrirá as portas para o controle legislativo – precedente que vai contra a liberdade de expressão que Cameron diz querer preservar”.10

As conclusões da comissão Levenson são esperadas para o fim de 2012. Até lá, o governo terá em mãos o relatório de outra comissão formada em março de 2011, encarregada de preparar um eventual projeto de lei que define os direitos dos cidadãos britânicos – British Bill of Rights. O PL modificaria a lei de direitos humanos adotada em 1998, cujo artigo 8, análogo ao da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, protege a vida privada dos indivíduos. Baseados nesse artigo, os magistrados britânicos progressivamente tendem a privilegiar o respeito pela vida privada em detrimento da liberdade de informação garantida pelo artigo 10. De acordo com Cameron, tal evolução constituiria um desvio a ser corrigido: “Os magistrados utilizam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem para promover um tipo de lei que protege a vida privada, sem que o Parlamento diga uma palavra. É preciso refletir e se perguntar se devemos proceder dessa maneira”.11

Segundo Greenslade, se essa nova Bill of Rights vir à luz do dia, necessariamente deverá contar com uma definição precisa de “vida privada”, assim como de “liberdade de expressão”. Ainda assim, caberia aos magistrados, inevitavelmente, a responsabilidade de arbitrar os casos problemáticos – cujas resoluções, por sua vez, se baseariam em uma definição precisa de “interesse público” que pudesse justificar (ou não) um atentado contra a vida privada.12 Em relação à situação na qual o artigo 12 (parágrafo 4) da lei de 1998 convida os magistrados a dar prioridade à liberdade de informação nos casos de incerteza, não se observam progressos aportados pelo novo texto – a não ser que a comissão esteja de acordo com a opinião de Woolf, magistrado implicado nos assuntos de mídia. Em 2002, ele afirmava que os “tribunais não devem esquecer que, se os jornais não publicam as informações que interessam ao público, menos jornais serão publicados, o que por sua vez joga contra os interesses públicos”.13 Essa visão, que reforça a lógica da mercantilização da informação, parece casar com a de Murdoch: “Estou cheio desses esnobes que querem explicar que meus jornais são ruins, que leem jornais que ninguém tem vontade de ler e ainda querem impor esse gosto elitista ao resto da sociedade”.14

A crise decorrente da revelação das práticas do News of the World explicitou a nocividade de certos modos de funcionamento da imprensa britânica, especialmente a popularesca, e impulsionou o engajamento na reforma de seu sistema de regulação. Também suscitou a reflexão sobre a promiscuidade entre poder político e meios de comunicação, o que permitirá, pelo menos por algum tempo, restaurar a primazia do político em relação às prioridades das redações mais popularescas. Essa surpreendente desestabilização corre o risco de impactar ainda mais a gestão do império de Murdoch, caso seja provado que o desvio ético de uma de suas filiais teve incidência também na conduta do grupo. Por outro lado, não há certeza de que essa crise – que toca nos pontos frágeis da democracia – sensibilizou profundamente a opinião pública, que hoje parece dar mais importância à degradação de seu poder de consumo e à violência urbana que ao questionamento dos meios de comunicação que pretendem interpretá-la.

(*) Jean-Claude Sergeant é professor na Universidade Paris III e autor de Les Médias britannique, Paris/Gap, Ophrys/Ploton, 2004.


1 Ler “Rupert Murdoch, empereur des médias” [Rupert Murdoch, imperador da mídia], Le Monde diplomatique, jan. 1999.
2 Primeiro-ministro de 1964 a 1970 e de 1974 a 1976.
3 O primeiro gabinete de Cameron se constituía por 29 membros, dos quais 18 eram milionários.
4 Designação metonímica do conjunto da imprensa britânica (a partir do nome da rua onde estavam  instalados os principais meios de comunicação antes de suas respectivas mudanças).
5 “Phone hacking investigation was a ‘cock up’” [Investigação das escutas telefônicas foi um fracasso], The Daily Telegraph, Londres, 9 jul. 2011.
6 “This is a good time to strike at the monstrous power of the media” [Este é um bom momento para atingir o poder monstruoso da mídia], The Guardian, Londres, 1º dez. 2006.
7 Chester Stern, “Getting cosy with the Yard” [De caso com a Yard], The Guardian, 7 set. 2010.
8 Review of Press Self-Regulation [Relatório da Autorregulação da Imprensa], Londres, HMSO, Cm.
2135, jan. 1993.
9 Departamento do Patrimônio Nacional, Privacy  and media intrusion: The government’s response [Privacidade e invasão da mídia: a resposta do governo], Londres, HMSO, Cm. 2918, jul. 1995.
10 “Cameron must not suppress free speech” [Cameron não deve suprimir a liberdade de expressão], editorial do The Daily Telegraph, 21 jul. 2011.
11 Relatado por The Daily Telegraph, “Celebrities would lose super-injunctions in Bill of Rights plan” [Celebridades perderiam visibilidade com a nova Carta de Direitos], 27 abr. 2011.
12 “Editors tangle with the zip code” [Editores se confundem com código postal], The Guardian, 2 maio 2011.
13 Relatado por Josuha Rozenberg, Privacy and the press [Privacidade e a mídia], Oxford University Press, 2004, p.56.
14 Citado no documentário Murdoch 1er (Murdoch Primeiro), exibido pelo Canal +, 9 jul. 1997

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