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quinta-feira, 2 de julho de 2009

Kalunga do Vão do Moleque: uma comunidade amedrontada

O município de Cavalcante, em Goiás, recebeu em maio a visita de uma comitiva com o objetivo de verificar a possibilidade de conflito iminente, vivenciada pelas comunidades remanescentes de quilombo do Vão do Moleque e Engenho II, localizadas no maior território quilombola do Brasil, o Kalunga. A força-tarefa foi composta por representantes do Departamento de Ouvidoria Agrária e Mediação de Conflitos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Fundação Cultural Palmares, IBAMA, Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado de Goiás, Polícia Militar Ambiental do Estado de Goiás, Prefeitura Municipal e Secretaria de Igualdade Racial de Cavalcante e Polícia Federal.

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O trabalho começou com uma reunião na Secretaria de Igualdade Racial de Cavalcante, na qual lideranças quilombolas reiteraram a denúncia contra ameaças e intimidações que a comunidade do Vão do Moleque vem sofrendo por pessoas ligadas à Fazenda Bonito, instalada dentro do Sítio Histórico Kalunga, e à empresa de empreendimentos imobiliários que vem demarcando as terras da Fazenda. Durante a reunião foi estabelecido o roteiro de trabalho de campo - quando, antes mesmo de o sol nascer, a equipe partiria rumo ao Vão do Moleque, onde o acesso é difícil, mas a paisagem compensa. Vale lembrar que o Sítio Histórico Kalunga está encravado na Chapada dos Veadeiros, cujo Parque Nacional é reconhecido pela Unesco como Patrimônio Natural Mundial.

Irregularidades

O conflito agrário tem origem no fato de o suposto proprietário da Fazenda Bonito ter demarcado sua reserva legal na área onde residem alguns quilombolas, que assim ficam impedidos de plantar, colher e criar animais para sua subsistência. Com isso se estabeleceu um clima de tensão e insegurança geral, pois a construção da cerca limita as áreas que os kalunga exploram há várias gerações, com sua agricultura tradicional e criação de pequenos rebanhos e animais domésticos.

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Nem bem a equipe chegava no Vão do Moleque, constatava uma primeira irregularidade: a cerca da Fazenda está sendo construída com madeiras nobres, protegidas por lei. Numa série de visitas casa a casa para colher depoimentos, especialmente dos moradores de áreas limítrofes à Fazenda, os relatos de cerca de 10 famílias foram praticamente unânimes - em junho do ano passado, os quilombolas começaram a ser intimidados por empregados do empresário João Batista Fernandes do Nascimento, inclusive com armas por eles sistematicamente exibidas, alguns vestindo uniformes de camuflagem similares ao do Exército.

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FCP Em 22 de abril último, em audiência realizada na Ouvidoria Agrária Nacional, em Brasília, o empresário alegou que as armas de seus empregados são usadas na caça. Eva Carvalho, uma das lideranças do Vão do Moleque, questiona: "Se ele diz que aqui é área de proteção, como então pode usar armas para caçar?" Eva questiona também a legalidade da documentação de propriedade da Fazenda, ao que a secretária da Igualdade Racial de Cavalcante, Lucilene Rosa - que é kalunga - completa: "Nós não sabemos se o que ele alega é verdade, é preciso apresentar documentos que ele não apresenta, e mesmo assim não seria ele a fazer a demarcação da fazenda, até porque está dentro de um território quilombola titulado".

Em seu depoimento, Eva espontaneamente confirma a ilegalidade quanto à cerca da fazenda: "Ele proíbe a gente de cortar madeira, e a gente sabe quais as que são proibidas e quais as que podemos tirar para fazer nossos telhados. Mas e ele, tem o direito? E ele tira até as proibidas pra fazer a cerca!". Também aponta o que considera dois pesos e duas medidas: "Tem o caso de um kalunga que responde a processo por ter tirado madeira pra fazer enxada e palha pra construir seu telhado. E o fazendeiro, faz o que quer?"

Outra irregularidade, ouvida informalmente de algumas crianças: elas relataram que são contratadas para empreitadas e diárias, o que, embora desconheçam, configura crime de exploração de trabalho infantil. A comunidade se sente ameaçada e com medo. As crianças, segundo Eva, estão traumatizadas: "Qualquer pessoa que se aproxime, elas pensam que está armada".

Conflito iminente

A comitiva encerrou a visita na sede da Fazenda Bonito, onde conversou com o gerente Felipe Machado Lopes. Ele afirmou que uma parte da cerca, acima da área dos kalunga, estava para ser concluída em breve, e que logo em seguida daria início à delimitação da área de reserva legal. O problema é que, nesse ponto, a cerca passará a 10 metros do curral de uma das famílias e próximo a residências de outras, o que pode acirrar o conflito.

Da visita resultaram algumas providências imediatas, entre elas a verificação, junto ao sistema de licenciamento da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Goiás, da averbação da reserva legal da propriedade Fazenda Bonito, e se as posses da comunidade Kalunga estão em áreas de reserva legal, proteção permanente e proteção de mananciais.

Na avaliação de Miriam Ferreira, gerente de projetos da Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares, "trata-se de um conflito já instaurado, e se não houver agilidade para a efetiva regularização fundiária do Território Kalunga e a desintrusão dos pretensos fazendeiros, esse conflito poderá ter consequências imprevisíveis".

Fonte: Fundação Cultural Palmares

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