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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

#Literatura O lixão dos repressores

Foi uma resposta macabramente concreta à dolorosa questão que acompanhara por anos a fio os familiares de tantos homens e mulheres assassinados pela ditadura: o que havia sido feito de seus corpos? Atônitos, o País e as famílias dos desaparecidos políticos descobriram a resposta ao mesmo tempo, e da pior forma possível. Em um canto do Cemitério Dom Bosco, no afastado bairro de Perus, na periferia de São Paulo, uma vala de 30 metros de comprimento por 50 centímetros de largura e 2,7 metros de profundidade surgiu aos olhos do público, tão escancarada quanto a tortura do período. Era 4 de setembro de 1990. Sob o olhar da mídia, os ossos foram saindo: 1.049 ossadas encheram dezenas de sacos plásticos, empilhados na grama um a um. Neles inexistia identificação dos corpos. Vítimas políticas e indigentes mortos de fome e meningite, inclusive crianças, dividiam os sacos. Em alguns, havia até três crânios. E assim, o passado dos dias de chumbo retornou à opinião pública, exumando a ditadura na memória coletiva do Brasil.

Muito do que se encontrou na vala de Perus continua um mistério. A maior parte das ossadas segue sem identificação, no aguardo de um exame de DNA, de uma descoberta, de outra perícia qualquer. Estão enterradas para sempre no esquecimento. Mas o que foi de fato esclarecido sobre o show de horrores perpetrado pelo governo dos militares nos anos 60 e 70, a partir da triste cena no cemitério paulistano, está agora mais esmiuçado que nunca em Vala Clandestina de Perus: Desaparecidos Políticos, Um Capítulo Não Encerrado da História Brasileira. Lançado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em parceria com o Instituto Macuco, o livro traz um compêndio com nove artigos de figuras ligadas à tétrica descoberta, como a ex-prefeita Luiza Erundina, a cargo de São Paulo à época, o jornalista Ivan Seixas, coordenador da Comissão da Verdade Estadual da Assembleia Legislativa, e a ex-presa política Maria Amélia Teles. Há ainda os relatórios mais importantes produzidos sobre a vala, como aquele da CPI da Câmara Municipal e o da Comissão de Acompanhamento das Investigações criada por Erundina.

“Há mais de duas décadas, descobriu-se que naquele cemitério municipal, construído em 1971 pelo então prefeito Paulo Maluf, havia uma vala clandestina com 1.049 ossadas acondicionadas em sacos plásticos sem nenhuma identificação”, escreve a ex-prefeita. A menção não é gratuita. Maluf fora escolhido pelos militares para administrar a cidade quando a tortura, a morte e o desaparecimento de opositores políticos viraram política de Estado, especialmente em São Paulo. Não há registro documental da decisão, mas o cemitério seria utilizado não apenas para servir de última morada para os mortos da região, mas de depósito de cadáveres de indigentes, vítimas da violência urbana, das ações do esquadrão da morte e para enterrar, ou fazer “desaparecer”, os corpos de militantes de esquerda.

Ivan Seixas faz uma síntese emotiva do período e conclui que o lugar escolhido pelo regime assassino para suas vítimas políticas era o mesmo onde enterrava seus pobres, inclusive cerca de 500 crianças, muitas mortas por desnutrição e meningite, à época em surto na cidade. “Seus corpos ainda em formação tinham ossadas frágeis que não resistiram ao tempo e se desfizeram quase todos.”

O projeto original previa a implantação de um crematório para dar fim às ossadas, o que não ocorreu por questões legais. “Foi então tentada a mudança da legislação para permitir a cremação”, diz o relatório da Comissão Especial. “Enquanto isso, as ossadas começavam a chamar a atenção dos que passavam pelo cemitério, visto que estavam à mostra através dos vidros das portas das salas e exalavam mau cheiro.” A “solução final” encontrada foi a construção de uma vala clandestina, sem registro de sua criação ou demarcação como área de sepultamento e sequer incluída na planta do cemitério, “em área reservada em planta para a construção de uma capela”. Nunca houve registro da transferência dos corpos exumados. “A desorganização histórica do Serviço Funerário Municipal foi colocada a serviço de um esquema de ocultamento dos corpos de militantes de oposição ao regime militar, mortos sob torturas.”

Como escreve o jornalista Luiz Hespanha, a vala era “a última ponta de um no velo” que começava na Operação Bandeirantes (Oban), aliança empresarial e militar criada para sustentar as operações de captura, tortura e interrogatório, e passava pelo DOI-Codi e pelo Dops. “O Cemitério Dom Bosco de Perus era, se não o principal, um dos destinos finais dos mortos sob tortura pela equipe de (Sérgio Paranhos) Fleury.” Entre 1971 e 1973 ao menos 25 militantes capturados com vida foram enterrados no cemitério. Em meio às ossadas de indigentes, foram identificados por peritos da Unicamp os restos mortais de Dênis Antônio Casemiro e Frederico Eduardo Mayr. Em covas comuns estavam os de Sônia Maria de Moraes Angel Jones, Antônio Carlos Bicalho Lana, Helber José Gomes Goulart e Emanuel Bezerra dos Santos. E isso graças à extenuante procura de seus familiares e amigos.

“A descoberta da vala de Perus faz parte da incansável busca dos familiares por seus parentes”, escrevem Suzana Lisboa e Maria Amélia Teles. “A cada ossada, catalogada ou não, levantava-se uma quase história de vida e de morte: assim foram se construindo os personagens da vala. Gente como o casal Antônio Carlos Lana e Sonia Maria de Moraes Jones, que “vivia a intensidade do seu amor clandestino” quando foram capturados. “Sonia foi torturada durante 48 horas, sendo estuprada com um cassetete da Polícia do Exército, o que lhe provocou hemorragia interna. Novas torturas lhe foram aplicadas e seus seios foram arrancados”, diz o relatório da Comissão. “Como intimidação e escárnio diante do sofrimento da família, o cassetete usado para o estupro foi depois presenteado ao pai de Sonia por um militar.” Os Moraes lutaram até o fim para enterrar a filha. O corpo estava em Perus.

No local onde foram encontradas as ossadas, ergueu-se um memorial, de autoria do arquiteto Ricardo Ohtake, com os dizeres: “Os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.” Mas a série de fotos em preto e branco de Marcelo Vignaron, tiradas à época, ilustra ainda melhor o horror do momento e dá a dimensão do efeito irrevogável que a cova coletiva abriu na história brasileira e mesmo no imaginário popular do País.

Fonte: Revista Carta Capital, em 05/10/2012

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