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domingo, 6 de janeiro de 2013

#Música Pedro Alexandre Sanches: O silêncio de Leci Brandão

Matéria publicada originalmente na Revista Caros Amigos, em outubro de 2011. Ao final, tem atalho para obter o CD!

“Deixa ele assumir, deixa ele transar, deixa ele amar/ é melhor/ do que ele sacar de uma arma/ pra nos matar.” Os versos eram contundentes, até porque tratavam simultaneamente de dois temas explosivos, e à época pouquíssimo mencionados no Brasil: racismo e homofobia.


A autora era a sambista carioca Leci Brandão. O ano era 1980. Os versos, do terno samba Deixa, Deixa, não foram aprovados pela gravadora que mantinha a artista sob contrato, a multinacional PolyGram. Apesar dos primeiros ventos de abertura que sopravam no país, tampouco passou pelo crivo da época um samba de título explícito, Assumindo: “No meio-dia do sol/ ou sobre a meia-lua/ vocês já andam de mãos dadas no meio da rua”.

Leci Brandão e Mano Brown - Deixa, Deixa

O contrato foi rompido, e Leci, que gravava discos desde 1975 e lançara quatro LPs pela PolyGram, passou cinco anos na geladeira do mercado musical. Deixa, Deixa e Assumindo viriam à tona em 1985, na estreia de seu contrato com uma nova companhia, a nacional Copacabana, hoje extinta. Uma terceira canção que ficou emperrada em 1980 se tornaria agora um sucesso de gueto, e só ganharia notoriedade mais ampla neste início de século 21.

Foi em 2005, quando o também carioca Seu Jorge recuperou, num show ao vivo com a popularíssima mineira Ana Carolina, o Zé do Caroço enjeitado 20 anos antes oeka então maior companhia de discos em atividade no Brasil. "Está nascendo um novo líder/ no Morro do Pau da Bandeira", avisava o hoje célebre samba de protesto social, em tempos nos quais ainda não havia espaço para gente como Mano Brown, Alexandre Pires, MV Bill ou Seu Jorge. (Esse último, por sinal, apimentaria um pouco mais o discurso de Leci em sua versão, trocando o verbo do verso "na hora que a televisão brasileira distrai toda gente com sua novela" para "destrói".)

Seu Jorge - Zé do Caroço

O Brasil mudou profundamente nos últimos 30 anos - basta citar que Leci Brandão, radicada há anos em São Paulo, hoje é deputada estadual pelo PC do B. Zé do Caroço avançou após os tropeços iniciais, em contraste com aquela virada dos anos 1970 para 1980, quando não parecia haver lugar no Brasil para uma artista como Leci.

Prova disso é que a própria gravadora que em 1980 não fez negócio com Zé do Caroço, hoje rebatizada Universal, resolveu contar a história do vexame que passou - e, possivelmente, dos discos que deixou de vender por deixar Zé do Caroço para lá. O pesquisador Rodrigo Faour foi quem animou a empresa a ajustar contas com seu passado, na coletânea O Canto Livre de Leci Brandão - As Primeiras Gravações + Raridades e Inéditas. Entre as 19 faixas, estão as versões originais, engavetadas, de Zé do Caroço, Assumindo e Deixa, Deixa.

Leci Brandão - Assumindo

A compilação não serve só para reparar o, digamos, desencontro. Outras várias faixas incluídas demonstram que Leci vinha, fazia tempo, testando os limites do mercado musical brasileiro - e da Censura da então já agonizante ditadura que, segundo Faour, implicou a princípio com os sambas Não Cala o Cantor (liberada em 1980) e Vamos ao Teatro (em 1977). Nessa última, Leci usava o slogan "vá ao teatro" para agulhar a ditadura: "Aquele palco tão estranho limitou nosso cantar/ não por culpa de tamanho, sim por medo de falar".

Para lá do universo político, a compositora vinha empunhando bandeiras também nos campos racial (em Ritual, Não Cala o Cantor, Marias, Apenas um Bloco de Sujo) e, principalmente, sexual. Beliscava muito de leve o tema da misoginia em sambas como Ser Mulher (Amélia de Verdade) (excluído da coletânea) e Ensopadinho, mas a homossexualidade era tema principal de pelo menos nove canções da época, a maioria delas incluídas na seleção de Faour.

Leci Brandão - Ser Mulher

Já no primeiro LP pela Polygram, de 1976, havia As Pessoas e Eles ("as pessoas não entendem por que eles se assumiram"), Deixa pra Lá ("você tem que se assumir") e a faixa-título, Questão de Gosto ("não sei quem tem razão/ se quem dá o pé/ ou se quem dá a mão"). E Leci voltou à carga no ano seguinte, na faixa de abertura de Coisas do Meu Pessoal, Ombro Amigo: "Você vive se escondendo/ sempre respondendo com certo temor/ eu sei que as pessoas lhe agridem/ que até mesmo proíbem/ sua forma de amor".

Pela primeira vez, suas provocações ganharam notoriedade, porque o samba foi incluído na trilha sonora da novela das oito da Globo Espelho Mágico. Adotando a terceira pessoa e tomando o sim por não, o samba falava da falta de coragem para ser explicitamente corajoso: "Num dia, sem tal covardia/ você poderá com seu amor sair/ agora ainda não é hora/ de você, amigo, poder assumir".

Leci Brandão - Ombro Amigo

A temática continou aparecendo nos discos seguintes, em Ferro Frio ("foi a nossa vida assim tão criticada/ mas o nosso amor é como ferro frio/ não vai quebrar com qualquer pancada"), de 1978, e na curiosa Chantagem, de 1980. Nessa, a narradora falava, em primeira pessoa, como uma pessoa que ameçava revelar em público sua sexualidade: "Pensar que vou me incomodar/ só por dizer que vai contar/ ou resolver que vai me entregar/ eu sei de mim".

Leci Brandão - Chantagem

A autora que em 1977 constatava que "agora ainda não é a hora de poder assumir" tentou o pulo do gato três anos depois, em Assumindo: "Vocês já ousam de mãos dadas no meio da rua". Não deu certo. Após cinco anos calada, retomou as faixas retidas e as revestiu com a sonoridade de samba solto que conquistava mentes e quadris Brasil afora, via nomes como Grupo Fundo de Quintal e Zeca Pagodinho. O mesmo disco que tinha Zé do Caroço, Assumindo e Deixa, Deixa trazia também os sucessos de massa Papai Vadiou e Isso é Fundo de Quintal, essa última composta por ela.

Leci Brandão - Isso é Fundo de Quintal

Leci aprendia a conquistar espaço pelas beiradas. Os temas mais leves viraram clássicos pop, enquanto os mais pesados eram percebidos pelos garotos do rap e da geração pagodeira dos anos 1990 - rappers como Rappin' Hood sempre a idolatraram, e o Art Popular, de Leandro Lehart, regravou Zé do Caroço já em 1993.

Ainda não era hora de o Brasil poder assumir em público seu racismo (e homofobia, e misoginia etc.). Essa é, a propósito, uma história inacabada e irresolvida. Mas temos caminhado, e há de chegar o dia em que a "Maria do Caroço" Leci Brandão será reverenciada não só pela coragem, mas também como a grande compositora popular que é.


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