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terça-feira, 3 de julho de 2012

#Mundo A tenacidade dos estudantes do Quebec

Pascale Dufour*

"Raramente vimos uma agressão tão flagrante ser cometida contra os direitos fundamentais que sustentam a ação social e política no Quebec”. É nestes termos que um importante grupo de historiadores denunciou a lei 78, aprovada pela Assembleia Nacional quebequense em 18 de maio. O dispositivo constitui o coquetel legislativo mais repressivo de que se tem conhecimento desde outubro de 1970, quando membros da Frente de Libertação do Quebec sequestraram e assassinaram o ministro do Trabalho da província, Pierre Laporte.

No centésimo dia de greve, 22 de maio, estudantes protestam
no centro de Montreal: "100 dias de desprezo"

O objetivo dos parlamentares? Pôr fim ao conflito estudantil que atinge o Quebec desde 13 de fevereiro por meio da restrição do direito de se manifestar, da liberdade de expressão e de associação e impondo fortes multas àqueles que “impedirem o direito de um estudante seguir seu curso”. Na véspera da votação, quase 40% dos alunos do ensino superior estavam em greve. O desafio do movimento? O acesso aos estudos superiores e a decisão do governo liberal de Jean Charest de aumentar as taxas de matrícula das universidades.

Com taxas de US$ 2.168 por ano – ou seja, menos da metade da média nacional –, as universidades do Quebec figuram de longe entre as menos onerosas do Canadá, se comparadas a algumas províncias de língua inglesa, como Ontário ou a Colômbia Britânica, onde as taxas são superiores a US$ 6.500, em média, no primeiro ciclo. Essa posição privilegiada resulta de escolhas políticas operadas nos anos 1960 durante a Revolução Tranquila, quando o governo da província se empenhava em formar uma elite de língua francesa e em permitir uma relativa democratização dos estudos superiores. Ele tinha, então, congelado as taxas de matrícula em um nível muito baixo, criado os Colégios de Ensino Geral e Profissional (Cegep) para garantir a formação pós-secundária/pré-universitária e formado uma rede de estabelecimentos superiores em escala provincial (a Universidade do Quebec, que estende suas ramificações de Montreal a Rimouski, de Chicoutimi a Abitibi-Temiscamingue).

O sucesso foi garantido. Em 1971, 66% dos jovens entre 15 e 24 anos eram escolarizados em período integral; hoje eles ultrapassam os 80%. Ainda mais significativo, 45% dos estudantes do Quebec são chamados “de primeira geração” – nenhum de seus pais frequentou os bancos da universidade –, a proporção mais elevada do Canadá. Em 2006, cerca de 40% vinham de uma família com renda inferior a US$ 50 mil por ano, e um quinto tinha crescido em uma região rural. O aumento das taxas de matrícula decidido por Charest ameaça tais conquistas: segundo o Comitê de Consulta sobre a Acessibilidade Financeira aos Estudos (ligado ao Ministério da Educação, mas autônomo), o aumento previsto poderia bloquear o acesso à universidade de 7 mil estudantes (cerca de 2,5% dos efetivos totais).

Não é a primeira vez que o modelo de ensino superior do Quebec se vê questionado. O governo liberal de Robert Bourassa abriu a brecha em 1989, anulando o congelamento decidido em 1968. As taxas universitárias então aumentaram substancialmente: em quatro anos passaram de US$ 504 para US$ 1.668 por ano. Seis anos depois, o primeiro-ministro soberano Jacques Parizeau voltou atrás nessa decisão; mas, desde o começo dos anos 1990, as universidades podem impor aos estudantes “taxas aferentes” – que tratam do conjunto dos custos administrativos, como taxas de biblioteca ou de secretaria, acesso aos centros esportivos ou culturais etc. –, que se acrescentam à matrícula. Seu valor varia de acordo com o estabelecimento, mas gira em torno de US$ 650 por ano.

Sindicatos universitários poderosos

Em 2007, pouco antes da campanha eleitoral, o governo Charest anunciou um primeiro aumento de US$ 500 em cinco anos, levando a fatura a seu nível atual. Depois o primeiro-ministro decidiu realizar um novo aumento, cujas modalidades foram discutidas quando de um “encontro dos parceiros na educação”, em dezembro de 2010. Os centros sindicais e as uniões estudantis denunciaram logo o programa de discussões imposto pelo governo.

Três meses depois, no dia 17 de março de 2011, o governo do Quebec revelou o fruto de suas cogitações: um aumento de 75% em cinco anos. No final, a soma por um ano de estudos se elevaria assim a US$ 3.793, sem contar a evolução provável das taxas aferentes. Objetivo declarado: recuperar o nível das taxas de matrícula, desde seu congelamento em 1968. Uma parte dos lucros do aumento deve ser destinada ao programa público de empréstimos e bolsas. Um quarto dos estudantes universitários inscritos em período integral veria o aumento compensado pelos empréstimos e bolsas; um em cada oito deveria aumentar sua dívida; e o resto, ou seja, cerca de 60%, absorveria o aumento por seus próprios meios.

Devendo entrar em vigor em setembro de 2012, essa decisão deu início a um movimento de contestação que é difícil não qualificar como histórico. Desde o fim de 2011, o rumor de uma greve na primavera [do Hemisfério Norte] toma forma. No dia 15 de maio de 2012, 156 mil estudantes (num total de cerca de 400 mil, incluindo os estabelecimentos de língua inglesa, submetidos ao mesmo regime que os outros) começavam sua 14ª semana de greve (com um pico de 225 mil no dia 22 de março). Segundo a polícia de Montreal, 170 manifestações aconteceram na cidade desde o início do conflito − algo nunca visto.

Esse sucesso se explica em parte pela força das organizações estudantis da Belle Province. Desde os anos 1980, elas são enquadradas pela lei como associações de alunos e estudantes, e gozam assim de um estatuto muito particular no seio do mundo ocidental: funcionam segundo uma lógica similar aos sindicatos de trabalhadores, em que todos os assalariados de uma “unidade de crédito” cotizam para seu sindicato. Dito de outra maneira, as associações estudantis do Quebec são ricas, poderosas e extremamente organizadas. Cada indivíduo deve pertencer a uma associação, segundo o princípio da unicidade: um estudante de Ciência Política da Universidade de Montreal, por exemplo, é obrigatoriamente membro da Associação dos Estudantes de Ciência Política e Estudos Internacionais. Cada organização é por sua vez ligada a uma União. Os estudantes dispõem assim de um direito de voto em assembleias que tomam decisões por maioria.

As uniões funcionam de maneira descentralizada, tanto que, numa mesma faculdade, alguns departamentos podem estar em greve enquanto outros continuam com os cursos normalmente. Mas, divididas durante o conflito estudantil de 2005 (que levantava a questão dos empréstimos e bolsas), as organizações estampam agora uma espantosa solidariedade – sem dúvida reforçada pela gestão de crise da ministra da Educação, Line Beauchamp,  em via de demissão, e do primeiro-ministro que, longe de acalmar o ardor dos manifestantes, contribuiu para a radicalização das posições.

Foram então necessários dois meses de greve para que o governo aceitasse se encontrar com as associações estudantis e debater o financiamento das universidades, deixando claro que não negociaria a questão das matrículas. As discussões tropeçaram já no segundo dia. O movimento endureceu: a partir de 25 de abril, toda noite, manifestações reúnem entre 5 mil e 10 mil pessoas nas ruas de Montreal. No dia 27 de abril, o governo propôs uma ampliação das condições de acesso aos empréstimos e bolsas públicas, assim como um novo prazo para o aumento das taxas: US$ 254 por ano em sete anos em vez de US$ 325 por ano em cinco anos... ou seja, um total de US$ 1.778 em vez dos US$ 1.625 inicialmente previstos!

Uma raiva imensa tomou conta dos grevistas, que denunciam “o desprezo, a arrogância e a condescendência” do governo. Confrontos opuseram os manifestantes e as forças da ordem, principalmente no dia 4 de maio, quando o primeiro-ministro resolveu convocar um encontro com todos os parceiros implicados, incluindo as centrais sindicais e os reitores. Ao fim de vinte horas de negociação, foi assinado um acordo que trazia essencialmente a possibilidade de reduzir as taxas aferentes (e não as de matrícula). Ele foi maciçamente rejeitado pelas associações estudantis na semana seguinte. A crise parece sem saída e sérias dúvidas pairam sobre as possibilidades de recuperação dos cursos perdidos antes do início do próximo ano letivo, no outono canadense. “Os grevistas estão se dando conta de que não têm mais nada a perder”, analisa um estudante de Filosofia. “Sua vida está intrinsecamente ligada ao resultado desse movimento. A arrogância do governo e o destino sombrio que ele nos reserva deveriam ser suficientes para alimentar a mobilização.”

Diversas hipóteses circulam sobre o sentido da ação governamental. Para alguns, a escolha da firmeza – que chega a ser teimosia – se explicaria pelo fato de que o conflito mobiliza essencialmente os jovens, quer dizer, uma população cuja taxa de participação nas eleições é muito fraca (cerca de 30%) e que não constitui a clientela privilegiada do partido no poder. Outros sustentam que essa estratégia poderia permitir ao primeiro-ministro dar início a eleições num contexto de crise, e antes que outros litígios o alcancem no outono, principalmente com a Comissão de Investigação sobre a Indústria da Construção, que corre o risco de questionar a honestidade de alguns ministros liberais.

Mais críticos, alguns salientam enfim a incompetência do poder na administração de conflitos ao longo dos últimos anos, por exemplo, na questão ambiental: confrontado a fortes mobilizações, ele teve de voltar atrás em algumas decisões, como a privatização de um parque nacional ou a construção de uma central térmica a gás. Não teria ele subestimado a capacidade de mobilização e resistência do movimento estudantil?

Pelo direito coletivo ao saber

Os objetivos dessa luta ultrapassam o aumento das matrículas. Ainda que o Quebec não tenha sido atingido pela crise econômica de 2008 nas mesmas proporções que seu vizinho norte-americano, seu modelo social é progressivamente questionado, tanto nos discursos como nos fatos. Cada vez mais serviços públicos se tornam pagos, principalmente em matéria de saúde; as tarifas de eletricidade foram revistas e elevadas; e a lógica da competição e da concorrência foi introduzida na gestão dos estabelecimentos públicos.

Isso explica a ligação de outros agentes à causa estudantil: as centrais sindicais, mas também e principalmente as coalizões temporárias criadas para a ocasião, como os “Pais contra o aumento” e os “Professores contra o aumento”, particularmente ativos. Diversas vezes retomadas, as alianças pontuais levaram os estudantes, entre outras coisas, a unir suas vozes às de outros movimentos: 22 de abril para a Jornada da Terra, que reuniu 300 mil pessoas no parque do Mont-Royal, durante os desfiles do 1º de Maio etc.

Seria errôneo ver no movimento estudantil uma réplica do que se produziu no Chile ou na Espanha. A situação dos jovens do Quebec parece pouco com a dos jovens espanhóis. Claro, eles sofrem com um desemprego mais significativo do que o resto da população (14% dos jovens entre 15 e 24 anos, contra uma média nacional de 8%), mas o futuro não lhes parece completamente inviável. Eles são movidos mais por uma forma de ideal político, uma sábia mistura de luta contra a mercantilização da educação, pelo direito coletivo ao saber e pela justiça social.

Qualquer que seja a saída, a luta estudantil da primavera canadense de 2012 terá sido um vetor de politização para toda uma geração, mas também de polarização no seio de uma sociedade muito dividida no Quebec. Desde o início do movimento, pesquisas mostram que cerca da metade das pessoas interrogadas apoia a medida governamental, e a outra a rejeita. No seio dos partidos de oposição, o Partido do Quebec (social-democrata e soberanista) denuncia o aumento e promete sua anulação, caso ganhe as próximas eleições; o partido de esquerda Quebec Solidário milita pela gratuidade escolar; e a Coalizão Futuro Quebec, um novo partido de direita, apoia a decisão governamental.

Dentro da própria população estudantil, o conflito também revelou fraturas. Um grupo que se opõe à greve e apoia o aumento foi criado: o Movimento dos Estudantes Socialmente Responsáveis. Pouco organizados sobre o plano coletivo, seus membros recorreram aos tribunais, colocando em jogo seu direito individual de acompanhar os cursos e a obrigação para as universidades e para os Cegep de dispensá-los. O jornal La Presse recenseou no final de abril mais de 25 pedidos de liminar entregues para obter a retomada dos cursos e, em alguns casos, a proibição das manifestações no campus, com argumentos econômicos (prejuízos financeiros ligadas à prolongação do trimestre e à perda de um possível emprego de verão) ou universitários (admissão no outono seguinte em um programa de cotas).

Quando ordenadas, essas liminares geralmente não foram respeitadas, engendrando fortes tensões e uma repressão policial contra os grevistas no seio dos estabelecimentos, o que coloca questões de fundo ao conjunto da sociedade: a insubordinação e seu corolário, o zelo jurídico, devem se banalizar? A legitimidade coletiva do movimento de greve deve se impor diante dos direitos individuais dos “consumidores de estudos”?

Pascale Dufour é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de Montreal (Canadá).

Fonte: Le Monde Diplomatique, em junho de 2012

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